Aí por 1955 ou um pouco mais tarde, tudo indicava que o mundo estava próximo do fim. O perigo de uma guerra nuclear preocupava as pessoas com uma intensidade que o aquecimento global, hoje em dia, nem de longe possui.
A proximidade do apocalipse estimula, claro, o aparecimento de profetas. Para que eles surjam, entretanto, outras condições são necessárias. Eles têm de circular sem rumo pelas cidades e pelos povoados, sem vínculos com a família, com as igrejas e as instituições.
Num mundo burguês, industrial e secularizado, essa gente sem eira nem beira passou a responder pelo nome de "bohème", os "boêmios", os artistas como Baudelaire, Verlaine e Rimbaud.
Os profetas viraram poetas, músicos e pintores "malditos", até que o mercado de arte, o mundo editorial e as universidades passassem a apostar neles.
O quadro mudou. Hoje, o que se tem é um "precariado" intelectual, no qual o jovem ou o velho de talento se marcam menos por rejeitar a cultura estabelecida (que tolera praticamente tudo) e mais pela falta de emprego fixo.
O problema do "precariado", em oposição à antiga "boêmia artística", é excesso de oferta, não falta de demanda.
Os "malditos" de hoje correm mais o risco de ter o nome no Serasa do que de serem presos ou de terem suas obras proibidas, como acontecia no passado.
Nesta semana, o poeta americano Lawrence Ferlinghetti alcançou a idade bíblica de cem anos. É o último sobrevivente do movimento "beatnik", que, na Califórnia e na Nova York dos anos 1950, inaugurou a sensibilidade pacifista, ecológica, libertária e contracultural até hoje presente no pensamento progressista.
Ferlinghetti comemorou seu centenário publicando um livro autobiográfico, "Little Boy", que mais uma vez afirma seu imenso amor pela vida e pelo mundo.
Ele passou os primeiros anos de vida na França, criado por uma tia (a mãe não tinha dinheiro para criá-lo).
Ferlinghetti foi parar num orfanato, foi adotado por um casal de ricaços americanos, fez serviço militar no final da Segunda Guerra, estudou na Sorbonne, e finalmente abriu uma livraria e editora em San Francisco, a City Lights, que seria o foco da literatura alternativa americana na década de 1950.
Os "beats" a que Ferlinghetti se associou (Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs) adotaram esse nome não porque estivessem pensando em alguma "batida" de rock, mas porque buscavam um novo tipo de "beatitude" na existência material, com a ajuda de drogas, álcool e sexo.
Contavam também, e sobretudo, com a contemplação maravilhada das coisas. No seu livro mais importante, "Um Parque de Diversões na Cabeça" (muito bem traduzido por Eduardo Bueno e Leonardo Fróes para a L&PM), Ferlinghetti transmite essa experiência de um modo adorável, despretensioso e coloquial.
Veja-se o poema número 20. "Na confeitaria barata para além do El [o elevado do metrô]/ foi onde pela primeira vez/ me apaixonei/ pela irrealidade/ Os drops reluziam na semi-obscuridade/ daquele entardecer de setembro/ Um gato deslizava sobre o balcão entre pirulitos/ e pães de forma/ e Oh chicletes de bola (...)"
As cores falsas da sociedade de consumo se fundem, em outros poemas, ao "amarelo varrido" pelo "último sol", enquanto "gaivotas quase caem na terra firme". Ou aos "campos da infância", onde "o arco-íris se mistura na memória com a palha" e "cada coisa viva/ lança na eternidade a sua sombra."
Com versos quebrados, espalhados pela página, Ferlinghetti expressa uma vivência de vagabundagem, de boêmia, em que a certeza do fim do mundo algumas vezes leva ao puro prazer pela vida presente, e outras vezes às esperanças de transformação.
O problema dos poetas que se recusam a seguir os limites do formalismo, buscando uma lírica mais espontânea e calorosa, é que terminam frequentemente presos na armadilha da retórica. O impulso poético se expande para fora do sentimento pessoal, tornando-se invocação, discurso, profecia.
A saída de Ferlinghetti é temperar isso com ironia, como se desfizesse criticamente o êxtase verbal a que se entrega. "Estou esperando", diz ele num longo poema, "que a vida comece (...) e estou esperando/ soltar velas e zarpar para felicidade/ e estou esperando/ um Mayflower reconstruído/ que chegue à América/ com os direitos de sua epopeia para quadrinhos e para TV/ já vendidos antecipadamente/ para os nativos"...
Aos cem anos de idade, a vida de Ferlinghetti está apenas começando.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário