sábado, 28 de janeiro de 2017

Morre Emmanuelle Riva, protagonista de 'Hiroshima, Meu Amor'

A atriz francesa Emmanuelle Riva morreu nesta sexta-feira (27), aos 89 anos, após "uma longa doença", segundo pessoas próximas à artista.
Riva ficou famosa mundialmente por protagonizar o filme "Hiroshima, Meu Amor" (1959), do diretor francês Alain Resnais.
"Até o fim permaneceu ativa", declarou sua agente, Anne Alvares Correa. O último filme que a atriz participou, "Paris Pieds Nus", de Fiona Gordon e Dominique Abel, deve estrear em março deste ano, afirmou Correa.
"Emmanuelle Riva era uma mulher comovente, uma artista de rara exigência. Se vai uma voz inesquecível. Uma voz habitada pelo amor das palavras e da poesia", afirmou Frédérique Bredin, presidente do Centro Nacional do Cinema da França.
Desde "Hiroshima, Meu Amor" até "Amor" (2012), do diretor austríaco Michael Haneke (último longa já lançado estrelado por Riva), "foi uma das atrizes mais corajosas do cinema francês", destacou Bredin em um comunicado.
Por "Amor", Emmanuelle Riva recebeu em 2013 o prêmio César de melhor atriz e também uma indicação ao Oscar.


Reprodução da AFP, na Folha de São Paulo.

Anseio de partidos como PT e PSDB é o de que a crise prisional seja invisível

Os partidos políticos brasileiros estão se lixando para as penitenciárias. Nos 13 anos de PT, o número de presos foi multiplicado por 2,6: saltou de 239 mil para 622 mil (fevereiro de 2014).
O PSDB governa o Estado de São Paulo desde 1995: 166 unidades prisionais, mais de 220 mil presos e a vigência plena do Regime Disciplinar Diferenciado que submete detentos a isolamento absoluto.
De tempos em tempos, presídios explodem, facções se movem e a imagem do amontoado insalubre de seres humanos retorna à imprensa. É um problema real e importante, mas não faz parte da agenda política.
Nas eleições de 2014, o programa de governo do PT para o segundo mandato de Dilma, além de falar na cifra de R$1,1 bi para ajudar Estados e na criação de 47 mil vagas (o déficit já era de 250 mil), propagava o controle "mais efetivo" das fronteiras: "Evitamos, com o enfrentamento ao tráfico de drogas e armas, o fortalecimento do crime organizado".
O do PSDB e de Aécio é também genérico. Prometia "prevenção e repressão ao tráfico de drogas e de armas e à lavagem de dinheiro".
Os candidatos eram, evidentemente, favoráveis à humanização do sistema prisional, mas não se sabe se pretendiam reduzir ou ampliar o número de presos. O que se viu foi promessa de "segurança" e reafirmação da estratégia de combate ao tráfico de drogas que faz as prisões transbordarem de gente.
Alguém se recorda de uma robusta operação da Polícia Federal desarticulando rotas de tráfico de armas? Não é papel do governo estabelecer diretrizes de segurança pública e direcionar o serviço das agências de inteligência e repressão? Por que nada acontece?
Descobre-se, de repente, que um grupo empresarial chamado Umanizzare gerencia presídios no Amazonas e em Tocantins. É modernidade ou é mais uma tentativa de lavar as mãos? Quem controla a privatização? Quem se ocupa dos maus-tratos?
O anseio das autoridades é o de que a crise não seja visível, exposta por mortes, rebeliões e fugas. Não há políticas públicas para um encarceramento menos caótico e brutal.
O que se busca é remediar, obter tréguas. Mutirão relâmpago de advogados, aumento episódico de vigilância, mas nada capaz de domesticar a revolta latente que habita os presídios superlotados e retirar do sistema quem não precisaria estar preso e submetido às facções.
Há governantes que não sabem reagir aos acontecimentos. Dilma demorou mais de oito meses para indicar Fachin para o STF.
A resposta do governo Temer às rebeliões do Brasil é eficaz? Construir muro para separar inimigos? Envolver as Forças Armadas? Transferir líderes? Punir os que desta vez decapitaram? Alcançar outro período de paz, a paz dos cemitérios?
Depois da matança de Manaus e de Natal, em Bauru, interior de São Paulo,presos fogem do regime semiaberto. Em Brasília, membros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do governo antigo, renunciam. E o número de presos aumenta, dia após dia.
A população não se importa, só se assusta, e como a culpa é de todos, Judiciário, Legislativo, governos estaduais, ministros da Justiça, partidos políticos, ninguém se sente culpado de nada. A miséria das prisões é sujeira que não cabe mais embaixo do tapete.


Texto de Luis Francisco Carvalho Filho, na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Quem matou Teori Zavascki?

A última operação lançada pela Polícia Federal brasileira foi batizada "Cui Bono?" –"para o bem de quem?", "a quem beneficia?".
Quando se procura o responsável por um crime (ou por um fato que poderia ser um crime), quem sai ganhando poderia ser, no mínimo, suspeito. Não é?
De fato, a pergunta "a quem beneficia?", por si só, não leva ninguém a conclusão alguma.
Primeiro, um crime pode beneficiar a tanta gente que é impossível identificar, assim, o responsável. Segundo e mais importante, não somos seres racionais: não paramos de cometer atos que não nos favorecem e mesmo que nos prejudicam –por descontrole, vingança, rancor, amor, estupidez etc.
Na maioria dos casos, a pergunta "a quem beneficia?" só serve para produzir em nós a ilusão agradável de que compreendemos: de repente, a realidade pode ser "explicada" pelas supostas motivações dos indivíduos suspeitos.
A morte de Teori Zavascki foi um acidente? Sim, claro. Como a morte de Juscelino, de Eduardo Campos etc. –cui bono? Quem tinha interesse em atrasar a Lava Jato? Ou em destruir documentos que dizem que estavam na pasta do magistrado?
Sites, blogs, tuítes não precisam dizer quase nada explicitamente. Eles preferem fazer alusão a segredos que sequer precisam ser mencionados: entre "nós" um olhar basta, "eles" não vão nos enganar.
Essa preferência pela alusão evita o ridículo que, sem ela, triunfaria.
Pegue a simpatia declarada de Donald Trump por Putin. Acrescente a intervenção de hackers russos nas eleições dos EUA e eis uma mistura do seriado "The Americans" com o filme "A Profecia": desde criança, Trump seria um agente russo dormente que conseguiu entrar no establishment dos EUA a ponto de se tornar presidente do país. Não é boa?
Já escrevi isto antes: há um tremendo prazer em saborear nossa capacidade de "entender" o mundo, e tanto faz se a "explicação" pouco ou nada tem a ver com a realidade.
A ideia de conspirações escusas atrás de tudo faz sucesso desde o fim do século 18, quando a história ficou órfã de Deus. Desde então, adoramos descobrir ou inventar que mãos sangrentas operam escondidas nas coxias do nosso teatro: aparentemente, a paranoia nos consola de estarmos num mundo sem sentido.
Nas últimas décadas, duas datas. A partir dos anos 1950 e 1960 do século passado, as explicações paranoicas do mundo se multiplicam –talvez por efeito da Guerra Fria, em que a inimizade do outro lado podia explicar quase tudo.
Nos anos 1990, chega a internet. Torna-se fácil propagar ideias em comunidades em que todos concordam (com quem discorda não é preciso argumentar, basta bloquear). O consenso alimenta a certeza de cada um e a loucura das interpretações.
Como já dizia Nietzsche, comentando Hamlet no "Ecce Homo": "Não é a dúvida, mas a certeza que nos enlouquece".
Enfim, a paranoia é hoje o estilo mais popular de explicação do mundo. Isso porque o mundo é mais complexo do que nunca e topamos qualquer negócio para nos iludir quanto à nossa capacidade de explicá-lo. Certo? Sim, e a internet facilita essa ilusão.
Agora, talvez não seja só pela Guerra Fria que, nos anos 1950 e 60, tenha aumentado nosso gosto pela explicação paranoica do mundo.
Justamente nesses anos, no Ocidente, o amor dos pais pelos filhos se torna dramaticamente narcisista, ou seja, cada vez mais, os pais esperam que os filhos realizem seus sonhos frustrados. Cada vez mais, os pais amam os filhos como prolongamentos de suas próprias vidas –como segundas chances deles, dos pais, e não como seres separados.
Você acharia revoltante um pai ou uma mãe que tivessem um filho para encontrar na criança órgãos compatíveis com os seus, para transplante? Pois bem, o amor narcisista dos pais modernos é o equivalente psíquico dessa conduta.
O amor parental se tornou, ao mesmo tempo, excessivo e opressivo: você será o que eu preciso que você seja para realizar meus sonhos.
Logo no fim dos anos 1940, uma grande psicanalista, Melanie Klein, descobriu que, já no primeiro ano de vida, as crianças temiam ser odiadas pela pessoa que mais amavam. Ela chamou esse temor de "posição esquizoparanoide". Por que será?
Com os pais que temos e que somos, não é de estranhar que a paranoia se torne a maneira mais popular de tentar compreender o mundo.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

Trump nos lembra que países precisam de políticas nacionais

Na sua primeira semana de governo, o presidente Donald Trump detonou oacordo tarifário dos Estados Unidos com 11 países da região do Pacífico e anunciou que vai renegociar o tratado de livre comércio com o México e o Canadá.
Como Trump já havia acusado o México de roubar empregos dos americanos, a Casa Branca avisou: "Se nossos parceiros recusarem uma renegociação que dê condições justas aos nossos trabalhadores, o presidente anunciará a intenção dos Estados Unidos de se retirar do Nafta" (sigla que denomina o tratado)."
A estátua de Trump deve ficar no Itamaraty e a homenagem nada teria a ver com a essência de suas decisões. Serviria apenas para lembrar que os países precisam de políticas nacionais. Certas ou erradas, mas nacionais. Quem brinca de vagão acaba abandonado no meio da estrada.
Cuba foi vagão da União Soviética e deu-se mal. Em 1994, o México atrelou-se aos Estados Unidos e hoje se vê ofendido, humilhado, como se o Nafta fosse um acordo lesivo aos interesses americanos. Não é, mas o presidente dos Estados Unidos acha que é, e foi eleito com essa bandeira.
Em 2001, quando a diplomacia americana tentava atrair outros países americanos para o que seria uma ampla associação de livre comércio, a Alca, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty, disse o seguinte: "A negociação da Alca é a negociação de um patíbulo. Trata-se de um processo no qual os Estados Unidos, na condução dos seus interesses, querem que o Brasil entre numa zona de livre comércio abrindo mão da possibilidade de ter políticas comerciais, industriais e tecnológicas. Por que a Europa não faz uma zona de livre comércio com os Estados Unidos? E o Japão? Se ele não fazem, porque devemos fazê-lo?" (Mais tarde o Japão entrou no acordo do Pacífico que Trump mandou às favas.)
Pinheiro Guimarães foi demitido. Violência desnecessária, mas era o tempo do fascínio do tucanato e de muita gente boa pela globalização nos termos dos americanos.
Trump está mostrando ao mundo que países não devem ir atrás de locomotivas. Tem autoridade para dar essa lição porque está no comando da locomotiva, abandonando vagões. Os Estados Unidos têm seus objetivos e não compartilham soberania. Ir atrás de Washington pode ser uma fria.
Durante boa parte do século passado o Brasil foi vagão. Afastou-se da China e em 1971 passou pelo vexame de ver o professor Henry Kissinger apertando as mãos de Mao Zedong. Rompeu com Cuba em 1964 e no ano seguinte enfeitou uma intervenção americana na República Dominicana. Era o que convinha aos Estados Unidos, mas à época o México não se atrelou a essas duas iniciativas.
A história diplomática brasileira tem grandes momentos de independência, infelizmente pouco apreciados e até escondidos. Em 1975, os Estados Unidos meteram-se numa aventura em Angola e o Brasil alinhou-se com o governo do MPLA. Veio do próprio secretário de Estado Henry Kissinger o reconhecimento de que fizera bobagem. (Hoje o MPLA de Angola é uma cleptocracia, mas essa é outra história.) Num episódio menos conhecido, em 1982 o presidente americano Ronald Reagan estava pronto para invadir o Suriname e mandou o diretor da CIA ao Brasil, para buscar apoio. Não o teve e desistiu.


Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Falta de compreensão, romance e atenção estão entre causas da traição

Perguntei para 1.279 homens e mulheres: "O que é mais importante no casamento?". A resposta número um foi fidelidade. Mas, apesar dessa valorização, 60% dos homens e 47% das mulheres disseram que já foram infiéis.
As mulheres mostraram estar muito insatisfeitas com os seus casamentos na pesquisa. Na enorme lista em que elas descreveram os defeitos de seus maridos, como mostrei no livro "Por que homens e mulheres traem?", estão itens como falta de intimidade, de conversa, de escuta, de atenção, de beijo na boca, de romance, de elogios, de reconhecimento etc. Muitas afirmaram que "falta tudo" e que foram infiéis "por vingança".
Já os homens falaram, basicamente, de falta de compreensão, de carinho e de bom humor, como disse um engenheiro de 49 anos:
"Eu gostaria que a minha esposa fosse a minha melhor amiga e a minha única amante. Mas, depois do nosso segundo filho, ela abdicou de ser mulher para se transformar em mãe em tempo integral. Ela vive reclamando que não tem tempo para nada e que eu não ajudo em casa. Está sempre insatisfeita, cansada e irritada. Não foi por acaso que eu encontrei alguém que é tudo o que eu gostaria que a minha esposa fosse: compreensiva, carinhosa, amiga, amante, leve e divertida."
Para muitas mulheres o problema não é a falta de amor e de sexo no casamento. Uma atriz de 57 anos disse que a motivação para ser infiel foi "o desejo de ser desejada".
"Sou casada há 29 anos e todos acham que somos um casal perfeito. Mas meu marido me critica o tempo todo, parece que tem prazer em destruir minha autoestima. Tenho a sensação de que ele não reconhece o meu valor e não me enxerga mais como mulher. Eu me tornei invisível para ele. Cheguei à triste conclusão de que tenho um amante só para provar a mim mesma que ainda sou bonita e atraente em uma sociedade que é cruel para as mulheres da minha idade. Meu maior desejo é ser desejada apaixonadamente pelo meu homem."
Ela acredita que o melhor antídoto contra a traição é se sentir reconhecida e valorizada, receber atenção e elogios do marido e ter a certeza de que é única e especial para ele.
"Será que o meu marido precisa saber que é traído para aprender a me valorizar como mulher e prestar mais atenção aos meus desejos?"


Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

Infernos artificiais

Já que a crise penitenciária reacendeu o debate sobre a questão das drogas, reitero algumas observações que me parecem até meio óbvias, mas que são frequentemente esquecidas.
A primeira é que drogas, inclusive a maconha, fazem mal. Numa pequena minoria de pacientes, que ainda não somos capazes de identificar "a priori", elas têm efeitos verdadeiramente devastadores. É claro que isso não é motivo suficiente para proscrevê-las. Não cabe ao Estado determinar o que cada indivíduo pode fazer com seu próprio corpo e, igualmente importante, faz mais ou menos cem anos que o mundo abraçou o paradigma proibicionista e, a julgar pelos resultados, essa política já pode ser considerada um fracasso.
O planeta investe bilhões de dólares anuais na repressão ao tráfico, mas a prevalência global do uso de substâncias ilícitas segue mais ou menos o mesmo há quase uma década, assim como o número de usuários patológicos. O efeito mais notável de um aumento localizado da repressão é a elevação do preço da droga, o que equipara essa tarefa à pouco prática atividade de enxugar gelo.
Para mudar o "statu quo", então, não basta descriminalizar o uso. Seria preciso dar um passo mais ambicioso e legalizar efetivamente o consumo e o comércio de todos os entorpecentes. E mesmo assim não se devem esperar resultados imediatos.
É improvável que os traficantes troquem seu fuzil AK-47 por uma gravata e se tornem respeitáveis empresários. Com a legalização, eles tenderiam a migrar para outras transgressões, como assaltos e sequestros. Num primeiro momento, portanto, a violência poderia aumentar.
No médio prazo, porém, o jogo mudaria. O tráfico é a única atividade delinquencial em que a "vítima" chega a fazer fila para "sofrer o crime". Privadas do lucro fácil da venda de drogas, as quadrilhas veriam seu poder declinar. Foi o que aconteceu com os gângsteres dos EUA após a revogação da Lei Seca.


Texto de Helio Schwartsman, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Após 30 assassinatos em um dia, Belém vive clima de medo

Após 30 assassinatos em um dia, Belém vive clima de medo

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O problema da UERJ é a expressão crua do fracasso da sociedade do país

A Universidade Estadual do Rio de Janeiro, uma das mais importantes universidades do país, com cinco campi e 35 mil alunos, está ameaçada de fechar por falta de repasse de verbas. O início de suas aulas foram adiadas devido à ausência absoluta de condições.
Já no ano passado, vimos a cena desesperada de alunos e professores arrecadando cestas básicas para oferecer a funcionários com meses sem receber salários.
Longe de ser um caso isolado, a UERJ é apenas o exemplo mais dramático da situação da educação brasileira pública. Um país que leva universidades ao ponto de fechamento, sem causar nenhuma indignação social efetiva, é um país arruinado. Por isso, há de se dizer que o problema da UERJ não é apenas de seus professores e alunos. Ele é a expressão crua do fracasso puro e simples da sociedade brasileira.
Há dias, um ministro do Supremo Tribunal Federal, o sr. Roberto Barroso, achou por bem tecer considerações sobre o problema afirmando que deveríamos repensar o sistema público de ensino, de preferência apelando a um modelo de financiamento privado. No que ele expressa a opinião de alguns, para quem a educação deve aceitar não ser mais uma prioridade efetiva dos Estados, pois dinheiro não há.
É impossível não ver certa ironia em um representante do Poder Judiciário -o mesmo poder que recebeu, no meio da crise econômica que assola o país, aumento de seus salários monárquicos (causando um impacto de R$ 4,7 bilhões a menos só em 2017)-, falar que há de se aceitar que o Estado não tenha R$ 1,1 bilhão para garantir o orçamento de uma das nossas mais importantes universidades.
Alguém poderia começar por tentar explicar o que era, de fato, mais prioritário ao país: aumentar salários de desembargadores, juízes e afins ou garantir o funcionamento de nosso sistema público de ensino, levando a União a financiar universidades públicas (mesmo que estaduais) combalidas. Como se vê, o problema não é a falta de dinheiro. O problema é: para quem o Estado é, de fato, um Estado mínimo.
Mas tenhamos uma visão de conjunto. No mesmo momento em que o sistema de pesquisa e ensino brasileiro é desmontado, recebemos, graças a Oxfam, a notícia de que as oito maiores fortunas do mundo equivalem aos rendimentos de, simplesmente, metade da população mais pobre do planeta. Alguém poderia se perguntar o que esses dois fatos têm em comum. Eu diria: há uma relação profunda de causa e efeito.
Para que possamos chegar à situação repugnante de oito pessoas terem uma riqueza equivalente ao trabalho da metade mais pobre da população do planeta é necessário, ao menos, dois fenômenos.
Primeiro, uma desqualificação do trabalho manual e seus frutos, com claros interesses de espoliação. Não é apenas a concentração imoral de renda que choca, mas o caráter fictício do valor, que faz do trabalho manual, fundamental para a reprodução material da sociedade global, algo pago apenas no limite da sobrevivência da mão de obra.
Para que essas pessoas sejam ricas, é necessário que o trabalho que está na base da produção seja brutalmente desvalorizado.
Isso pode chegar ao extremo. Lembrem como um dos oito afortunados é dono da Zara, a mesma empresa denunciada, inclusive no Brasil, por se aproveitar de trabalho escravo. Assim se fazem as fortunas.
Um comentarista afirmou, com um tom de condescendência, que Bill Gates (outro afortunado) usa sua fortuna para programas de eletrificação na África. Bem, mas os africanos não precisam da filantropia de Bill, eles precisam apenas de preço justo para seus produtos.
O segundo fenômeno em questão é a demissão do Estado de sua responsabilidade social. Warren Buffett (outro afortunado) chegou a escrever artigos anos atrás dizendo que milionários como ele deveriam pagar mais impostos e que não conseguia entender por que era tão bem tratado pelo fisco do seu país.
Bem, Warren, enquanto pessoas como você são agraciadas, principalmente no Brasil, com o sorriso cúmplice do fisco e dos governos, universidades públicas são fechadas por falta de verba. Mas há sempre aqueles que se identificam com o agressor e julgam que nada disso vale uma batida de panela.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo. Destaques do blogueiro.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Menos Estado de bem-estar social leva a mais Estado penitenciário

Depois de 134 mortes registradas nos últimos 15 dias em prisões brasileiras, o presidente Michel Temer anunciou na terça-feira (17) a liberação das Forças Armadas para atuar em presídios estaduais, lembrando os tempos da monarquia, que reservava ao Exército tarefas típicas dos capitães do mato, como a prisão de escravos em fuga.
Além da falta de preparo dos militares para esse tipo de situação, a medida recebeu a mesma crítica que o anúncio da abertura de novas vagas em prisões feito anteriormente: nenhuma delas ataca a origem do problema.
Como bem descreveram Julita Lemgruber e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo no artigo "Show de horrores" publicado nesta Folha em 10/01/2017, não há solução estrutural para o problema prisional que não passe pela redução do número de presos provisórios, cuja maior parte está presa ilegalmente, e pela revisão da atual política de drogas, que, além de superlotar presídios com usuários e pequenos traficantes, confere cada vez mais poder a facções criminosas.
A experiência internacional aponta uma terceira precondição para evitar o problema da superlotação carcerária, algo que certamente não está no horizonte do governo Temer ou, o que é ainda mais grave, do debate político-econômico brasileiro atual.
Conforme sugere o estudo empírico seminal dos sociólogos Katherine Beckett e Bruce Western, que utiliza dados dos Estados norte-americanos entre 1975 e 1995, a taxa de encarceramento costuma ser maior onde o Estado de Bem-Estar Social é mais fraco.
A conclusão dos autores é que a redução dos programas sociais nos EUA durante os anos 1980 e 1990 refletiu a emergência de um novo sistema de administração do que chamam de "a marginalidade social".
O achado vai na linha do que havia exposto o sociólogo Loïc Wacquant em "As prisões da miséria".
Em vez da redução da intervenção estatal na vida social, a opção por "menos Estado" econômico e social, que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva nos vários países, leva à necessidade de "mais Estado" policial e penitenciário.
As evidências apresentadas por Richard Wilkinson e Kate Pickett no best-seller "The Spirit Level", publicado em 2009, parecem conferir generalidade a tais argumentos. Os dados compilados para um conjunto de países ricos indicam que, quanto maior o nível de desigualdade, maior também é a taxa de encarceramento por habitante.
O cruzamento de dados mais recentes de encarceramento apresentados pelo ICPR (Institute for Criminal Policy Research) com o índice de Gini divulgado pelo Banco Mundial sugere que essa relação positiva vale para o conjunto de países do G20 e que o Brasil não foge à regra.
Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, renova a escolha por uma abordagem exclusivista e punitivista de administrar a marginalidade social.
A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização.
Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie.


Texto de Laura Carvalho, na Folha de São Paulo

É mais fácil admitir a existência de uma doença do que a existência do mal

Em junho de 2015, em Charleston (Carolina do Sul, EUA), Dylann Roof, 21 anos, atirou nos fiéis, todos negros, que estavam rezando na Emanuel African Methodist Episcopal Church, uma igreja antiga e gloriosa para a comunidade negra norte-americana –desde o tempo da escravatura até a época da luta pelos direitos civis. Foi por essa relevância simbólica que Roof escolheu o lugar do seu ataque.
Balanço: nove mortos e três feridos. No primeiro depoimento, Roof confessou sua matança rindo. E disse que pensava ter matado só quatro ou cinco, no máximo. Quando soube que eram mais, pareceu satisfeito.
Roof declarou ter agido na esperança de iniciar e fomentar assim, pelo seu ato, uma guerra racial.
Uma das vítimas lhe perguntou por que ele estava atirando. Roof o matou respondendo: "Vocês estupram nossas mulheres e estão assumindo o controle do nosso país. Vocês tem que ir embora".
Em dezembro de 2016, Roof foi reconhecido culpado por um tribunal federal. Em janeiro começou a segunda fase do processo, em que seria decidida a pena.
Nessa fase, Roof pediu para ser o advogado de si mesmo, porque não queria que seus defensores atenuassem sua culpa alegando sua insanidade mental. Contra a vontade de Roof, a defesa pediu que ele fosse declarado doente e incapaz de ser advogado de si mesmo.
Numa nota de seu diário, Roof escreveu: "Quero declarar que sou moralmente oposto à psicologia. É uma invenção judaica, que só inventa doenças e diz às pessoas que elas têm problemas que elas não têm".
Robert Dunham, que dirige o Death Penalty Information Center (centro de informação sobre a pena de morte) comentou: "Imaginemos que o júri enxergue Roof como mau, ou seja, como alguém que fez a escolha consciente e racional de matar pessoas inocentes e devotas, e isso, na intenção de fomentar o ódio racial. Nesse caso, a condenação de Roof à pena de morte é muito mais provável do que se o júri acreditasse que ele é uma pessoa jovem e profundamente doente, que agiu sob a influência de crenças racistas delirantes".
Ora, Roof não quer que suas ideias e motivações sejam consideradas doentias. Em 4 janeiro, na abertura da segunda fase do processo, ele disse aos jurados:
"Vocês devem ter ouvido que a razão pela qual eu escolhi ser advogado de mim mesmo é para evitar que meus advogados me apresentem de maneira errada. Isso é absolutamente correto."
"Eu me represento, não vou mentir sobre mim mesmo. Meus advogados me obrigaram a passar por duas audiências de capacidade mental, não porque eu teria um problema. ["¦] O ponto é que eu não vou mentir para vocês ["¦] Não há nada de errado comigo psicologicamente."
Entendemos facilmente de onde vem o horror que essa declaração nos inspira. Em síntese, para nós, é mais fácil admitir a existência de uma doença ou do erro do que a existência do mal.
Preferimos pensar que Roof esteja errado (mal-informado, extraviado pelas redes sociais etc.) ou, então, que seu erro seja efeito de uma tremenda neurose familiar ou de uma psicose a pensar que ele seja "apenas" alguém que pensa diferente de nós.
Imaginamos ser "tolerantes" e abertos, mas, no fundo, preferimos imaginar que quem pensa diferente de nós esteja doente. Numa briga, o último recurso do ódio é um "Vai se tratar", que condena tudo o que o outro diz e faz à irrelevância.
Enfim, onde estaria a doença de Roof?
1) Ele seria doente pelo que acredita e que motiva sua ação. OK, mas distinguir o "certo" do delirante não é simples. Muitas de nossas crenças são extravagantes quanto as de Roof; só não percebemos sua extravagância porque as compartilhamos com muitos outros. Um delírio coletivo não parece mais um delírio (pense nos dogmas religiosos, por exemplo).
2) Ele seria doente por causa da certeza absoluta, que o impede de discutir e mudar de opinião. De fato, na clínica, a sensação de certeza incontestável é a marca do delírio. Mas essa certeza se tornou hoje um sintoma social banal: é por isso que, na internet, parece que todos procuram apenas o que confirma suas crenças.
Em suma, Roof pode ser louco, mas não é fácil dizer por quê.
Agora, para Roof, ser considerado doente implicaria a irrelevância de seus pensamentos e de seu ato, como "coisa de louco". Seria melhor e mais digno ser condenado à morte, como ele foi em 13 de janeiro. A execução, como sempre acontece, vai levar tempo.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

Sob Obama, o antirracismo viveu dias gloriosos

Impor um presidente negro a um país ainda hoje tão racista como são os Estados Unidos - este o maior feito de Barack Obama.
Impor-se ao respeito inabalado de todo esse país durante os oito anos na presidência - este o segundo maior feito de Barack Obama. O revertério que leva um primata patético a sucedê-lo sugere a dimensão gigantesca daqueles feitos.
O primeiro êxito e a decência cativante de Obama fizeram esperar-se dele mais do que fez. Ou, no mínimo, o principal dos seus compromissos de candidato: a retirada americana das áreas de guerra, a redução da presença militar dos EUA no mundo, o fim do crime imoral que é a prisão de Guantánamo, apesar de sem importância na opinião dos americanos, mas humilhante para o mundo que, acovardado, o testemunha.
Obama não apenas deixa forte presença militar no mundo, por muitos dita maior do que a encontrada. Foi da sua presidência a autorização para uso da nova arma que são os pequenos aviões não tripulados, ou drones, transformados em objetos assassinos.
Chefes ou suspeitos de ação anti-americana são assassinados do ar em países sem guerra com os EUA. O colar de bases americanos em torno da então URSS, que fez os soviéticos instalarem foguetes em Cuba para barganhá-los pela retirada das bases, ganhou com Obama nova versão. Os EUA montam, na Ásia e na Oceania, um arco de bases e arsenais em volta da China. Com Obama, as ânsias beligerantes dos EUA ficaram apenas menos ostensivas e mais educadas, sem troca de desaforos.
Do mesmo lote de compromissos principais do candidato, Obama fez três grandes realizações. Duas notórias: a economia em colapso foi oxigenada, com efeitos sociais ainda em progressão; e a persistente batalha que conseguiu vergar o Congresso para implantar um sistema público de saúde, o Obamacare já sob as picaretas dos republicanos.
A terceira foi a ação contra o racismo. Antecessor de Kennedy, o general Eisenhower usou contra o racismo agressivo a Guarda Nacional. Kennedy, como em quase tudo, dividiu-se entre a força e a demagogia.
Obama teve a inteligência e a originalidade de usar uma das armas mais raras entre os ditos civilizados: a naturalidade. Assim como para eleger-se não fez do racismo um tema de combate, na Casa Branca dirigiu-lhe poucas palavras: enfrentou-o com o seu dia a dia, com sua cara. Com a simbiose Barack-Michelle. Conscientizada ou não, a evidência penetrou fundo no país: nenhuma diferença entre brancos e negros.
O racismo não se extinguiu, talvez nem tenha se retraído em porção significativa, a Ku Klux Klan é sempre uma das bandeiras nacionais. Mas o antirracismo viveu dias gloriosos, para um futuro em que será difícil retrocedê-lo.
Mas um legado especial Barack Obama leva amanhã consigo: Michelle Obama, imagem consagrada, oradora brilhante, opinião e firmeza, potencial presidente dos Estados Unidos.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Acadêmicos correm para salvar documentos coloniais raros em Cuba

Acadêmicos correm para salvar documentos coloniais raros em Cuba

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Mitos do capitalismo: impunidade e distribuição

Estamos vivendo um tempo cruel.
Os mais aquinhoados se apegam em duas mitologias para falar do que chamam de realidade: a violência e o crime no Brasil seriam fruto da impunidade. Já a crise mundial se revolveria pela distribuição de riquezas que o capitalismo faz por conta própria. Duas ilusões que tapam a verdade com dedos. Muitos dedos. Cheios de anéis preciosos. Ouço na rua:
– A polícia prende, a justiça solta.
– Por um roubo de celular qual deveria ser a pena? – pergunto
– Sei lá, de cinco a dez anos.
– Regime fechado?
– Claro.
– E por um assassinato?
– Perpétua.
A Folha de S. Paulo publicou neste domingo robusta matéria sobre a situação carcerária brasileira, a quarta maior do mundo, que cresce mais do que corrupção e a desfaçatez de certos políticos brasileiros.
O resumo da tragédia é este: preto pobre preso por pouca droga.
Assim: “O estudo da USP apontou que flagrantes de tráfico em SP ocorrem nas ruas (82%), durante patrulha (62%), e que apenas 4% deles eram fruto de investigação”.
Nega o crime. Vence a palavra do policial.
Nada de investigação. Condenação em 15 minutos.
Uma guerra perdida e injusta. Em editorial, a Folha de S. Paulo pede a legalização do comércio de drogas. Se pode álcool e cigarros, por que não as demais? A repressão mata, gera corrupção, custa caríssimo e não funciona.
Mais: “Pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania indica que 72% dos presos por tráfico no Rio em 2013 ficaram presos durante o processo. Depois, apenas 45% deles foram condenados. Em 2/3, os réus não tiveram testemunhas de defesa, apenas de acusação”.
Pode isso, Arnaldo?
De volta ao começo: “’O perfil majoritário do condenado por tráfico é esse: pobre, primário, preso com pouca droga. É o elo mais fraco na cadeia da produção e venda’, diz Vitore Maximiano, defensor público de SP e ex-secretário nacional de Políticas Sobre Drogas”.
Quem entra no sistema prisional brasileiro vira hóspede para a vida inteira. Entra e sai, mas não se liberta.
Tem impunidade? Para quem? Está mais frouxa a repressão: “Em 2005, antes da lei {que mudou regras sobre prisão de consumidores}, 14% dos crimes pelos quais os presos foram condenados ou acusados eram relacionados ao tráfico. Em 2014, esse número subiu para 28% – um incremento da ordem de 349% em números absolutos”.
Prende-se mais quem venda ou carrega drogas do que quem mata: “No mesmo período, entre 2005 e 2014, o número de homicídios no país aumentou 125%, fazendo do Brasil o triste recordista mundial em assassinatos, com quase 60 mil mortes em 2015. O percentual de presos condenados ou acusados de homicídio nas prisões, porém, caiu de 11% para 10%, mantendo-se estável ao longo de uma década”.
Conclusão dos especialistas: “Com isso, o instrumento da prisão não só tem baixo impacto na redução da violência, como tende, no médio prazo, a agravá-la”.
Investe-se na escola do crime: “Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP de 2012 apontou que em 62% dos casos de flagrante por tráfico em São Paulo a pessoa era presa com menos de 100 gramas de droga; 80,6% dos detidos eram réus primários”.
É a solução que satisfaz a mídia conservadora e as pessoas de raciocínio simplório. Só piora. Não funciona
*
Falta mais capitalismo?
Segurem esta. Está na mídia internacional. A Folha de S. Paulo repercute: “Oito empresários, todos eles do sexo masculino, acumulam a mesma riqueza que a metade mais pobre da população mundial, ou seja, 3,6 bilhões de pessoas, disse neste domingo (15) a Oxfam, por ocasião da realização esta semana do Fórum Econômico Mundial de Davos, que reúne a elite política e empresarial. Os oito bilionários são:
  • Bill Gates, da Microsoft;
  • Amancio Ortega, da Inditex (dono da Zara);
  • Warren Buffett, maior acionista da Berkshire Hathaway;
  • Carlos Slim, proprietário do Grupo Carso;
  • Jeff Bezos, da Amazon;
  • Mark Zuckerberg, do Facebook;
  • Larry Ellison, da Oracle;
  • Michael Bloomberg, da agência de informação de economia e finanças Bloomberg.”
Conclusão acaciana: “A Ofxam publicou um relatório, intitulado ‘Uma economia para 99%’, mostrando que os novos dados disponíveis, sobretudo da China e da Índia, permitem afirmar que “a lacuna entre ricos e pobres é muito maior do que se temia”. Poderia ser outra? Não.
O economista francês Thomas Piketty ficou famoso ao provar que o capitalismo, deixado a si mesmo, concentra riqueza e não o contrário, criando ricos por herança, não por trabalho de cada um. Outro nome para parasitismo.
Por que não poderia ser assim?
Porque um mundo com bilhões de miseráveis implode.
Ou explode.
Será difícil encarcerar todos os descontentes.
Ou convencê-los a conformar-se com o que tem.
É tiro no pé.
O comunismo é a saída?
Claro que não.
Que tal reinventar o Estado do Bem Estar Social?

"Cría cuervos..."

As rebeliões em presídios, com cenas de cefalectomia e cardiectomia, surpreendem pela carga de violência, mas não por terem ocorrido. Elas são o resultado lógico de décadas de descaso para com a política penitenciária.
"Descaso" talvez não seja a melhor palavra. Se o sistema tivesse sido desenhado com o propósito explícito de criar poderosas organizações criminosas rivais fadadas a se enfrentar, dificilmente os projetistas poderiam ter sido mais eficientes do que foram nossas autoridades.
O primeiro passo é construir as cadeias, preferencialmente pouco funcionais e bem desconfortáveis. O segundo é ir trancafiando nelas legiões crescentes de pessoas, sem observar lotações máximas e sem nenhum critério de separação dos presidiários por periculosidade ou mesmo por condenação –cerca de 40% dos presos no Brasil são provisórios.
Encontramos aqui um mecanismo de "feedback" positivo. Quanto mais gente é presa, mais insuportáveis se tornam as condições na cadeia. A certa altura, o melhor meio de um recém-ingresso sobreviver no sistema é jurar obediência às organizações criminosas que, no vácuo da inação estatal, conseguem impor alguma ordem ao caos. Isso significa que, quanto mais prendemos (e quanto piores forem as cadeias), mais fortalecemos PCCs, CVs, FDNs etc.
Como as prisões (e mesmo o crime nas ruas) ficam mais fáceis de administrar quando há poucos bandidos fazendo as vezes de soberano hobbesiano, os sindicatos de delinquentes foram tolerados pelo Estado e se expandiram até que o confronto entre organizações rivais ficou inevitável.
Desarmar essa bomba vai ser trabalhoso e passa, a meu ver, pelo resgate da noção de direito penal mínimo. Precisamos encarcerar muito menos gente, legalizando o que não precisa ser crime, como o uso de drogas, e substituindo as penas de prisão por pecuniárias e de restrição de direitos. Sem isso, não vai dar certo.


Texto de Helio Schwartsman, na Folha de São Paulo

Corrupção sem fronteiras

Um dos símbolos mais conhecidos do poder é o Rolls-Royce preto que transporta os presidentes da República. Comprado em 1953, o conversível sai da garagem nos dias de posse e nos desfiles de Sete de Setembro. Em outros tempos, já deu carona à rainha Elizabeth e ao general De Gaulle.
Nesta segunda (16), a marca britânica voltou ao noticiário político por uma razão menos nobre: divulgou um acordo para encerrar investigações por corrupção no Brasil. A Rolls-Royce pagará multa de US$ 25,6 milhões por ter sido flagrada no petrolão. (Desde os anos 70, a RR se divide em duas firmas com acionistas diferentes: uma produz automóveis e a outra, investigada na Lava Jato, fabrica turbinas e aviões militares).
A Rolls-Royce entrou na mira do Ministério Público Federal quando Pedro Barusco, ex-gerente da Petrobras, admitiu ter recebido suborno na compra de equipamentos para plataformas. Seu depoimento dá uma boa amostra da banalização da roubalheira. Ele diz que "não se recorda exatamente quem foi beneficiado na divisão das propinas, mas lembra que foi beneficiado com pelo menos US$ 200 mil".
Enquadrada pelo órgão antifraude do seu país, a Rolls-Royce também pagará multas milionárias às autoridades britânicas e americanas. O valor total das punições supera a cifra de R$ 2,7 bilhões.
O acordo fechado pela empresa parece um roteiro para a Odebrecht. A empreiteira baiana é suspeita de distribuir propinas em ao menos 12 países. As investigações indicam que a prática era sempre a mesma, só mudava o idioma do acerto.
Na economia globalizada, a gatunagem também ultrapassa fronteiras. Não importa a cor do passaporte, e sim a relação custo-benefício de tentar embolsar dinheiro fora da lei. O caso da Rolls-Royce deveria servir de lembrete para quem pensa que basta trocar empresas brasileiras por multinacionais para acabar com a corrupção.


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo

Febeapá moderno: Senado quer discutir enredo de escola de samba

Fevereiro promete. Carnaval em tempos de crise é sempre espetacular. Aliás, nem parece crise: a expectativa é de mais de 5 milhões de pessoas nas ruas do Rio. A prefeitura liberou 473 blocos e bandas - de mais de 500 inscritos - para desfilar. Alguns são estreantes, como o Chinelo de Dedo, do Centro, ou o Bangay Folia, de Bangu.
Vai ter trio elétrico baiano: o Bloco da Eva, do grupo de axé, sairá na Praia do Pepê, Barra da Tijuca - felizmente bem longe de onde se concentram os verdadeiros foliões. Estes preferem a desobediência civil, no melhor estilo bloco de sujos: seis ou sete amigos e amigas, vestidos com sobras da Casa Turuna, marcam encontro numa esquina, armam-se de tamborins e pandeiros e seguem em cortejo cantando velhas marchinhas e sambas-enredos.
O melhor até agora é a polêmica envolvendo a Imperatriz Leopoldinense e o enredo "Xingu: o Clamor que Vem da Floresta", que faz críticas ao agronegócio. Um dos versos do samba chama a usina de Belo Monte de "belo monstro". Desde 1970, quando a Portela desfilou com "Lendas e Mistérios do Amazonas", a temática indígena é figurinha fácil na avenida, e quase sempre explorando a vertente política e contestatória.
"O agro é tech, o agro é pop" e acha que pode tudo, inclusive agir como capitão do mato. Numa reedição do Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País), o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) quer propor uma sessão no Senado para descobrir os financiadores da Imperatriz. Poderia ter proposto o mesmo quando o agronegócio patrocinou enredos esdrúxulos como o cavalo mangalarga, o iogurte e a cidade de Sorriso (MT).
No mais, a festa resiste. Marcelo Crivella, o novo prefeito, está tendo aulas de samba no pé, para não fazer feio em sua primeira aparição no Sambódromo. Esquindô lelê.


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

A perseguição a Lula e a destruição do sentido ético

Na peça Galileu Galilei, Bertolt Brecht estabelece uma polêmica acerca do sentido e do significado do herói. Em conversa com seu secretário Andreas o sábio italiano enfrenta a angústia de defender a verdade de que a Terra não é centro do sistema planetário sabendo que a Santa Inquisição lhe ceifaria a vida ou de negar a verdade e continuar mantendo a dádiva da vida. Andreas, jovem idealista, incita o mestre a defender a verdade da evidência científica argumentando que a possível morte o tornará herói. Entre as ponderações dos argumentos, Andreas declara: "Pobre do povo que não tem herói!". Ao que Galileu responde: " Não Andreas. Pobre do povo que precisa de herói!".
Brecht adota o partido de Galileu, mas penso que se enganou. A tese interpretativa da negação do herói sustenta que um povo que precisa de herói não é um povo liberto. É um povo escravo de fato ou escravo da ignorância e do medo. Sustenta-se que a liberdade é uma atitude coletiva que se isenta da necessidade do herói. Muitos marxistas esposaram a tese de Brecht, mas não Gramsci, por exemplo, que compreendeu perfeitamente não só a importância do herói, mas também a força simbólica do mito que deveria ser encarnada na ideia de partido como moderno príncipe sem, contudo, suprimir o papel do líder, do herói no sentido da sua individuação.
Não há uma oposição entre o papel do herói e a construção de uma vontade coletiva. Aliás, não há registro na história dos povos que indique o surgimento de uma potente vontade coletiva transformadora sem a existência de um líder-guia, de um herói. A preponderância de um e de outro - herói ou vontade coletiva - depende muito das circunstâncias, da cultura de cada povo e das virtudes presentes em um ou na outra. Os gregos antigos, por exemplo, enfatizaram sobremaneira a importância do herói. Já, na República romana, os líderes destacaram a vontade coletiva do povo e suas virtudes como a força de construção de um sentido grandioso de Roma, criando uma das primeiras teorias do destino manifesto.
De qualquer forma os heróis desempenharam um papel fundamental para referenciar as atitudes humanas, as atitudes de um povo. E, mesmo neste mundo liquefeito de hoje, neste mundo da impermanência, eles continuam a desempenhar um papel positivo. É verdade que existe mais de um modelo de herói e, na tipologia grega clássica, temos praticamente uma antípoda entre Aquiles que faz grandes feitos, pela sua ousadia, e morre jovem para  projetar-se na memória eterna dos humanos e Ulisses que, com sua prudência, enfrenta todo tipo de adversidade, mas chega a uma velhice triunfante.
O herói é um portador de virtudes - coragem, ousadia, prudência, etc. - mas, acima de tudo, como referencia moral da conduta do povo e dos cidadãos e como referência ética que orienta do sentido de futuro da cidade ou da nação, ele se define também pela exemplaridade de seus atos e de sua conduta. Atos e condutas exemplares são o amalgama que unificará e agregará o povo e será o fundamento da lei justa que, em grande medida, substituirá a própria função do herói, já que o povo encontrou o seu fundamento moral e ético.
O herói expressa também um recurso simbólico extraordinário, capaz de mobilizar energias e princípios nos momentos de crise ou nos momentos de realização de elevados empreendimentos coletivos. Quase todos os povos têm seus heróis e seus líderes significativos, mal ou os bem, lançam mãos a esses recursos simbólicos. Não por acaso, em seu discurso de despedida, Obama, em face a este momento angustiante em que vivem os Estados Unidos, recorreu duas ou três vezes aos Pais Fundadores.
As elites brasileiras e a destruição ética do país
Costuma-se dizer que o povo brasileiro não tem heróis no sentido nacional, popular e político do termo. Há uma boa dose de verdade nisso. A singularidade da nossa desditosa história, a indigência da nossa formação política e cultural, a carência de movimentos nacionais e populares na nossa formação,  fraqueza das nossas virtudes coletivas e as dos nossos líderes e, principalmente, a violência recorrente das elites e do Estado contra os movimentos e líderes que lutaram por direitos e bem estar coletivo constituem causas dessa carência de heróis.
Em que pese tudo isto, existem, contudo, em nossa história, dois líderes que se aproximam da ideia de herói no sentido nacional, popular e político do termo. Trata-se de Getúlio Vargas e de Lula. Claro que quando se fala de Lula há algo de problemático na medida em que nunca é possível dizer algo definitivo de quem está vivo. Mas, com essa ressalva, cabe reconhecer que Vargas e Lula são os dois líderes nacionais que mais imprimiram um sentido ético à nação, no sentido de tentar unificá-la em torno do propósito de uma sociedade justa e do bem estar coletivo. O termo "ética" aqui é empregado no seu senso aristotélico, vinculado aos fins públicos comuns do bem estar e da justiça.
Dito isto cabe observar que tanto Vargas, quando vivo e mesmo que morto, e Lula em vida, sofrem uma perseguição tenaz por parte de setores das elites. Ao querer se destruir sua representação simbólica quer-se destruir a sua expressão enquanto referencial do sentido ético do Brasil e de seu povo. Quer-se destruir aquela energia simbólica que pode ser fonte de emanação de lutas e mobilizações, no presente e no futuro, por mais direitos e justiça. Quer-se destruir o sentido orientador da ideia de igualdade na construção de uma sociedade mais justa e digna. A destruição de Vargas e de Lula é a destruição de uma reserva de combate, por mais contradições e paradoxos que ambos representem. O fato é que as elites brasileiras sequer suportam a presença e a simbologia de figuras como Vargas e Lula mesmo que em seus governos partes das elites tenham sido beneficiadas.
É também nesta chave compreensiva que se deve entender a perseguição impiedosa que o juiz Moro, o procurador geral da República Rodrigo Janot, os procuradores representados na figura de Deltan Dallagnol e setores da Polícia Federal e do Judiciário movem contra Lula. De todos os processos e indiciamentos contra o ex-presidente, até agora, não há razoabilidade em nenhum deles. A perseguição, as denúncias vazias, os vazamentos seletivos, contudo, estimularam o golpe-impeachment e promoverem danos irreparáveis a Lula.
Como explicar a conduta desses agentes da persecução? Claro que existem interesses pessoais e políticos na perseguição, vaidades, ódios, rancores e frustrações. Mas esses agentes não deixam de ser a representação da violência atávica das elites brasileiras contra todo o sentido da construção ética de uma sociedade justa e igual e de tudo o que significa luta nacional e popular por direitos. Como serviçais das elites, esses agentes não deixam de se sentirem donos do Estado, donos dos instrumentos da violência concentrada, portadores de uma imemorial consciência dos privilégios patrimonialistas.
Direitos, justiça e igualdade e a constituição ética do Brasil e da sociedade, portanto, são ameaças aos interesses, ao poder e ao mando das elites e de seus agentes. De tempos em tempos promovem uma degola das conquistas alcançadas através das lutas. É isto que se está vendo neste momento com o governo Temer. Nestes surtos violentos e destrutivos da agregação social e do sentido ético, agridem também com mais violência as representações simbólicas dessas lutas e dessa construção. Os movimentos sociais e políticos progressistas precisam compreender que quando se trata de democracia, direitos, liberdade, justiça e igualdade nunca há uma garantia definitiva. A manutenção das conquistas e sua ampliação requer lutas e mobilizações permanentes.

Texto de Aldo Fornazieri, no Jornal GGN

Por maiores os sonhos

Mario Soares, líder socialista português no exílio, estava em Berlim no dia 25 de abril de 1974, quando os jovens oficiais do Exército derrubaram a ditadura em seu país. Tomou o trem para Lisboa, via Paris, mas só pôde entrar em Portugal três dias depois, 28 —a fronteira estava fechada, para impedir que os cardeais do regime deposto fugissem. Enquanto esperava para cruzá-la pela aldeia de Vilar Formoso, viu-se cercado por patrícios amorosos. A caravana não parou de crescer até a chegada na estação de Santa Apolônia, em Lisboa, e só então ele entendeu o tamanho de seus sonhos.
Seis meses depois, em outubro, saiu a edição portuguesa de seu livro "Portugal Amordaçado", escrito no exílio e, tal o seu prestígio, publicado em várias línguas, mas, óbvio, proibido pela ditadura. Descreve a trajetória de um professor, advogado e patriota que, tendo o seu país caído nas mãos do tirano Antonio de Oliveira Salazar, em 1926, quando ele estava com dois anos, levara a vida inteira sob o domínio do arbítrio.
O final do livro era emocionante: "Regressarei a Portugal logo que as circunstâncias o aconselhem. Serenamente, encararei os meus juízes e, eventualmente, os meus algozes. É um ato de fidelidade que devo ao meu país, ao ideal a que sirvo e a mim próprio". E completava: "Paris, fevereiro de 1972".
Dois anos depois, quando ele desceu daquele trem em triunfo, os juízes e algozes a que se referia estavam presos ou em seus próprios exílios. Mas já era um homem de 49 anos, idade então considerada avançada.
Bem, como sabemos, Soares teve tempo de sobra para, três vezes como primeiro-ministro e duas como presidente da República, ajudar a construir um país que, hoje, muitos invejam.
Ao morrer, no dia 7 último, aos 93, por maiores os sonhos, não lhe ficou nenhum por realizar.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo