Meu primeiro tête-à-tête com Mário Soares
foi também a mais clara evidência de que a chamada Revolução dos Cravos
era um alegre Woodstock político-militar, muito mais do que uma crucial
batalha Ocidente x comunismo, como muitos pensávamos à época.
Quer dizer, estou me incluindo no "pensávamos" mais por inércia do que
por realmente acreditar. Na verdade, minha torcida era para que o
Brasil, uma ditadura como Portugal deixava de ser, virasse um "imenso
Portugal", tal como sonhava o "Fado Tropical" de Chico Buarque.
O encontro com Mário Soares foi no escritório de primeiro-ministro, que
ele ocupava à época (era 1977 ou 78). Fiquei esperando ser chamado na
sala de guardas, à entrada.
Sozinho. Na parede, encostada, uma quantidade de armas suficiente para
fazer uma segunda revolução, se eu tivesse coragem para tanto. Ninguém
tomava conta delas, o que é absurdo, se vistas as coisas a partir da
paranoia que hoje cerca as questões de segurança.
Naquela época, estranhei um pouco, mas não muito. Estava acostumado à, digamos assim, alegre esculhambação que era a Revolução dos Cravos.
Desconfio até que foi a primeira revolução do mundo em que não houve
mortos ou, se houve, foram pouquíssimos. De fato, um balanço da Deutsche
Welle, aos 40 anos do fim da ditadura,
revelou apenas quatro mortes, todas ocorridas quando houve uma
tentativa de invasão do prédio ocupado pela Pide (a polícia política do
regime anterior).
O próprio nome da revolução, de resto, indica que, dos fuzis, saíam cravos e não balas.
Caçar notícias sobre a revolução do movimento militar era simples: em
vez de procurar os quartéis, o ideal era circular pela noite lisboeta e
ver em que casas noturnas estavam estacionadas "chaimites", como os
portugueses chamavam esses veículos blindados de transporte de tropas.
Pronto, era entrar e conversar com os "capitães" de abril, os meninos
que fizeram a revolução (concretizada no dia 25 de abril de 1974).
Nem era preciso que a Lisboa daqueles alegres tempos se transformasse em
um ninho de espiões de todas as potências da época —e até de países
como o Brasil, cuja ditadura temia uma virada à portuguesa.
A festa revolucionária era exacerbada pelos pândegos anarquistas, que
abusavam do humor até contra vetustos símbolos mundiais da revolução,
como o PCP, o Partido Comunista Português.
Nas bocas do metrô ou em locais de grande aglomeração, os anarquistas
distribuíam seu jornalzinho, chamado "A Merda". Faziam questão de ficar
próximos dos que vendiam o jornal do PCP, o "Avante".
"Comprem o Avante, o jornal da classe operária", apregoavam os comunistas. "A Merda", rebatiam de imediato os anarquistas.
Quando o coronel Vasco Gonçalves assumiu o cargo de primeiro-ministro,
ainda em 1974, tinha fama de ser ligado aos comunistas e de ser
excêntrico, para não dizer outra coisa.
Os anarquistas não perdoaram: picharam nos muros do hospício de Lisboa a
frase "Vasco, volte para casa". A limpeza pública logo caiou o muro,
mas os anarquistas voltaram à carga no dia seguinte: "Vasco, pelo menos
venha para consultas", picharam.
Nova caiação, terceira investida: "Vasco, pelo amor de Deus, tome os
remédios", frases sempre assinadas pelo "A" dentro de um círculo que é o
símbolo dos anarquistas.
Vasco Gonçalves ainda durou um ano ou pouco mais no cargo. Sua demissão
significou o fim do período anárquico-militar da revolução e o início da
normalização.
Foi a partir de então que os políticos como Mário Soares passaram a ter a
proeminência até então exercida pelos capitães, coronéis e generais.
Mas, assim como a fase militar fora festiva, a política começou a pôr ordem na anarquia sem perder a ternura jamais.
Minha impressão dos contatos com Mário Soares é a de que ele jamais
deixou de ser, como premiê ou como presidente, o livreiro que havia sido
em seus tempos de exílio em Paris.
E livreiros jamais usam as palavras como armas e, sim, como cravos, como os cravos de abril.
Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo.
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