Livro de Patrick Deville investiga últimos anos de Trótski no México
SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES
DE BUENOS AIRES
Porto de Tampico. México, 1937. Um homem de 57 anos, de cabelos grisalhos revoltos, desembarca de um navio norueguês ao lado da mulher. Ambos estão pálidos e assustados com o sol da nova terra que os acolhe depois de tantos esconderijos. Parecem pressentir que esta será sua última morada.
Eles são o líder revolucionário soviético Léon Trótski (1879-1940) e sua mulher, Natália Ivánovna Sedova. Perseguidos por Stálin, refugiam-se na Cidade do México depois que o pintor muralista Diego Rivera convence o presidente Lázaro Cárdenas a dar asilo político ao casal.
"Foram tempos difíceis para Trótski, pois ele pressentia a possibilidade de ser assassinado a qualquer momento. Mas estou certo de que ele foi feliz no México. Porque construiu um cotidiano de trabalho, cuidava de seu jardim, atuava politicamente por meio de seus escritos, e tinha uma rede de amigos e intelectuais que só existia no México naquela época", diz à Folha o escritor francês Patrick Deville, 59, autor de "Viva!", que chega às livrarias brasileiras no próximo dia 20.
O livro não é só uma investigação sobre como foram os últimos três anos de vida de Trótski, até ser morto pelo militante comunista espanhol Ramón Mercader, mas um projeto mais ambicioso.
Deville recria a cartografia humana, social e geográfica do país em que Trótski desembarcou. Um México das décadas de 1920 e 1930, recém-saído da Revolução (iniciada em 1910), em que se havia criado um rico ambiente intelectual.
Ali chegaram várias pessoas, artistas, intelectuais e ativistas que queriam escapar de um mundo de conflitos e que caminharia para uma época de totalitarismos.
Para Deville, o fato de tantos personagens ilustres terem estado lá ao mesmo tempo –alguns encontrando-se, outros não– determinou o surgimento de caminhos políticos e artísticos que marcaram o resto do século.
"Meus livros são romances sem ficção", define o autor. Mas quem explica melhor o estilo de Deville é o argentino Alberto Manguel, na introdução: "É um desses historiadores que apelam para os recursos da ficção para dar realidade e verossimilhança às suas narrativas".
Além desses ingredientes, Deville acrescenta o de conhecer "in loco" onde se passaram os eventos e recolher vestígios deixados pelos que já morreram, "porque a geografia é o lugar comum em que se encontram o passado e o presente", justifica.
Esse modo de trabalhar se inspira numa reflexão do filósofo alemão Walter Benjamin, mencionada na abertura do livro: "Há um encontro tácito, marcado entre as gerações que nos precederam e a nossa. Fomos esperados nesta Terra".
Foi por isso que Deville tentou buscar também o máximo de pessoas que conheceram seus personagens. E é com encantamento que relata o encontro com Maurice Nadeau (1911-2013).
O lendário editor francês conheceu os dois personagens que são os pilares de "Viva!": Trótski e o escritor britânico Malcolm Lowry (1909-1957) –que morou na Cidade do México e em Cuernavaca enquanto escrevia "À Sombra do Vulcão" (1947), um dos principais livros do século 20 na opinião de Deville.
Não há registros de que Trótski e Lowry tenham se conhecido pessoalmente, apesar de terem vivido no mesmo país. Mas Deville vê muito em comum em ambas as trajetórias: dois autores no exílio, escrevendo obsessivamente e "com apaixonado sentido de urgência, enquanto o México os impactava muito".
Deville diz que, para encontrar as semelhanças entre essas vidas paralelas, foi essencial conversar com Nadeau, que, além de os ter conhecido, "falava daquela época como se tivesse sido na semana passada". E acrescenta: "a experiência de olhar nos olhos de Nadeau, alguém que de fato olhou nos olhos das pessoas que eu queria conhecer, é um sentimento muito difícil de transmitir de outra maneira que não a literária".
Mas são muitos mais os habitantes do universo de "Viva!". Estão nele também a fotógrafa revolucionária italiana Tina Modotti, a artista Frida Kahlo, com quem Trótski teve um romance, e o escritor britânico Graham Greene, entre outros.
A narrativa segue uma toada de tom vertiginoso que pode parecer confuso, tal a rapidez com que Deville vai fazendo associações e abrindo novos caminhos entre autores e obras. "Quis dar um pouco a sensação de como esses cruzamentos de trajetórias não eram planejados, mas sim obedeciam a uma certa lógica da casualidade", explica.
Uma longa viagem ao México, e uma interação com quem compõe, hoje, o círculo intelectual local –gente como Margo Glantz, Juan Villoro, Sergio Pitol e Mario Bellatín– ajudou-o a montar o quebra-cabeças.
"Esses artistas de hoje estão tocados por aquele período. O México é muito particular. Se, naquele tempo pós-revolucionário, a violência estava tanto na parte boa do que havia no país, como o legado da Revolução, estava também na parte ruim. Hoje seguimos vendo um país partido em dois pela violência.
E frisa: "É uma das características do México, a de conviver com a morte e saber refletir sobre ela. É um país sem moderação, como nenhum outro no planeta".
"Viva!" é parte de um projeto de vulto. Trata-se de um conjunto de 12 volumes, cujo ponto de partida são as transformações no mundo a partir de 1860, e cuja ação, sempre baseada em personagens reais, vem até hoje.
Já foram publicados na França "Pura Vida" (2004), que se passa na Nicarágua, "Ecuatoria" (2009), sobre exploradores na África, "Kampuchea" (2011), sobre o Khmer Vermelho no Camboja, "Peste e Cólera" (2012), que deve sair no Brasil na sequência.
Depois de "Viva!", Deville pretende lançar um romance sobre a França. E um projeto futuro, conta, será sobre o Brasil, embora ainda não tenha claro o enfoque.
"Tenho certeza do recorte, que será a partir de 1860, como os outros. Penso que é o ano em que o mundo passou a estar mais conectado, e por isso a partir dele começo a buscar os gênios, artistas e pessoas que impulsionaram as transformações de um ciclo que começou então, mas que ainda não se completou."
Reprodução da Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário