Em junho de 2015, em Charleston (Carolina do Sul, EUA), Dylann Roof, 21 anos, atirou nos fiéis, todos negros, que estavam rezando na Emanuel African Methodist Episcopal Church, uma igreja antiga e gloriosa para a comunidade negra norte-americana –desde o tempo da escravatura até a época da luta pelos direitos civis. Foi por essa relevância simbólica que Roof escolheu o lugar do seu ataque.
Balanço: nove mortos e três feridos. No primeiro depoimento, Roof confessou sua matança rindo. E disse que pensava ter matado só quatro ou cinco, no máximo. Quando soube que eram mais, pareceu satisfeito.
Roof declarou ter agido na esperança de iniciar e fomentar assim, pelo seu ato, uma guerra racial.
Uma das vítimas lhe perguntou por que ele estava atirando. Roof o matou respondendo: "Vocês estupram nossas mulheres e estão assumindo o controle do nosso país. Vocês tem que ir embora".
Em dezembro de 2016, Roof foi reconhecido culpado por um tribunal federal. Em janeiro começou a segunda fase do processo, em que seria decidida a pena.
Nessa fase, Roof pediu para ser o advogado de si mesmo, porque não queria que seus defensores atenuassem sua culpa alegando sua insanidade mental. Contra a vontade de Roof, a defesa pediu que ele fosse declarado doente e incapaz de ser advogado de si mesmo.
Numa nota de seu diário, Roof escreveu: "Quero declarar que sou moralmente oposto à psicologia. É uma invenção judaica, que só inventa doenças e diz às pessoas que elas têm problemas que elas não têm".
Robert Dunham, que dirige o Death Penalty Information Center (centro de informação sobre a pena de morte) comentou: "Imaginemos que o júri enxergue Roof como mau, ou seja, como alguém que fez a escolha consciente e racional de matar pessoas inocentes e devotas, e isso, na intenção de fomentar o ódio racial. Nesse caso, a condenação de Roof à pena de morte é muito mais provável do que se o júri acreditasse que ele é uma pessoa jovem e profundamente doente, que agiu sob a influência de crenças racistas delirantes".
Ora, Roof não quer que suas ideias e motivações sejam consideradas doentias. Em 4 janeiro, na abertura da segunda fase do processo, ele disse aos jurados:
"Vocês devem ter ouvido que a razão pela qual eu escolhi ser advogado de mim mesmo é para evitar que meus advogados me apresentem de maneira errada. Isso é absolutamente correto."
"Eu me represento, não vou mentir sobre mim mesmo. Meus advogados me obrigaram a passar por duas audiências de capacidade mental, não porque eu teria um problema. ["¦] O ponto é que eu não vou mentir para vocês ["¦] Não há nada de errado comigo psicologicamente."
Entendemos facilmente de onde vem o horror que essa declaração nos inspira. Em síntese, para nós, é mais fácil admitir a existência de uma doença ou do erro do que a existência do mal.
Preferimos pensar que Roof esteja errado (mal-informado, extraviado pelas redes sociais etc.) ou, então, que seu erro seja efeito de uma tremenda neurose familiar ou de uma psicose a pensar que ele seja "apenas" alguém que pensa diferente de nós.
Imaginamos ser "tolerantes" e abertos, mas, no fundo, preferimos imaginar que quem pensa diferente de nós esteja doente. Numa briga, o último recurso do ódio é um "Vai se tratar", que condena tudo o que o outro diz e faz à irrelevância.
Enfim, onde estaria a doença de Roof?
1) Ele seria doente pelo que acredita e que motiva sua ação. OK, mas distinguir o "certo" do delirante não é simples. Muitas de nossas crenças são extravagantes quanto as de Roof; só não percebemos sua extravagância porque as compartilhamos com muitos outros. Um delírio coletivo não parece mais um delírio (pense nos dogmas religiosos, por exemplo).
2) Ele seria doente por causa da certeza absoluta, que o impede de discutir e mudar de opinião. De fato, na clínica, a sensação de certeza incontestável é a marca do delírio. Mas essa certeza se tornou hoje um sintoma social banal: é por isso que, na internet, parece que todos procuram apenas o que confirma suas crenças.
Em suma, Roof pode ser louco, mas não é fácil dizer por quê.
Agora, para Roof, ser considerado doente implicaria a irrelevância de seus pensamentos e de seu ato, como "coisa de louco". Seria melhor e mais digno ser condenado à morte, como ele foi em 13 de janeiro. A execução, como sempre acontece, vai levar tempo.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário