Dois mil e dezessete começou bem. Digo isso sem ironia: gosto dos anos que começam cortando seco o clima da festa. De fato, para mim, o ano sempre começa no dia depois –não nos brindes da meia noite, mas no que sobra disso: o cheiro dos excessos regurgitados pelas ruas, a sujeira e as garrafas quebradas.
2017 disse direto ao que veio. Sem contar os 56 que morreram no motim dos presidiários do Amazonas, houve a chacina da festa de Réveillon em Campinas e o ataque à boate Reina de Istambul.
Em Istambul, o Estado Islâmico reivindicou os 39 assassinatos, alegando que o Reina "era uma das casas noturnas mais famosas em que os cristãos celebram seu feriado apóstata".
Gostei tanto da ideia de celebrar um "feriado apóstata" que me arrependi de ter ficado em casa sozinho no dia 31. Pode deixar, na próxima passagem do ano, vou cair na apostasia.
A boate Reina de Istambul é famosa. Parece que já estiveram lá, na beira do Bósforo, Daniel Craig, Naomi Watts e Jon Bon Jovi. O ingresso, R$ 70, nem é tão caro, mas talvez seja elevado para os padrões locais.
Quando alguém ataca uma festa, é quase sempre porque ele não foi ou não se sentiu convidado. Talvez o assassino do Reina não tivesse o dinheiro para entrar; talvez ele tivesse a sabedoria de prever que, mesmo entrando, ele ficaria de fora –num canto ou mesmo na pista, mas sem entrar na festa. Ninguém ia se interessar por ele como se fosse Daniel Craig. Além disso, é bem provável que Daniel Craig, quando esteve lá, se sentisse péssimo –triste, vazio, cansado e sozinho.
As festas, em tese, deveriam espantar a tristeza, mas conseguem apenas escondê-la. O barulho mascara e desculpa nossa dificuldade de dizer ou de escutar qualquer coisa que preste. Os pulos ao ritmo da música eletrônica evitam uma aproximação da qual não saberíamos bem o que fazer. Sabe por que tem tanta briga na saída das festas? Não é a bebida, nem o ciúmes: é a frustração.
De Istambul vamos para Campinas, onde alguém quis exterminar a família de sua ex-mulher, a ponto que ele matou o próprio filho de oito anos que, diz a carta do assassino, ele era impedido de ver tanto quanto queria.
A carta do assassino é misógina, carente e louca. De qualquer forma, é notável que ele atacou justamente no meio da festa do Réveillon. Certo, naquele momento, "todos" estariam lá, e ele poderia matá-los à vontade. Mas não é só isso: a festa era também uma reunião da qual ele fora excluído: todos iam trocar beijos, brindar e desejar feliz ano novo uns para os outros"¦ E ele?
De fato, como em qualquer festa de família, o clima devia incluir os rancores e dissabores padrão. Mas tanto faz: qualquer festa, aos olhos de quem se sente excluído dela, parece extraordinária. A ponto que, se não posso participar, ao menos posso fazer que ninguém mais participe –posso matar os convidados, acabar com essa alegria que não me inclui.
Mas de onde vem a poderosa ideia de que sempre tem uma festa à qual não somos convidados, e ela é divertidíssima ou, dá na mesma, doce a cheia de afetos amorosos?
É por causa dessa ideia que é tão difícil ficar em casa nas noites de festas comandadas. Por isso é difícil passar o fim de semana ou as férias sem ir para o litoral. E não tem fila, desastre, momento sinistro que valham: na semana que vem, acreditaremos de novo que, se nós não formos para lá, a festa será incrível –na nossa ausência"¦
A ideia da festa da qual fomos excluídos está na mente humana há muito tempo. Avner Falk (um grande psicólogo israelense) explicava a lenda do Paraíso Terrestre e de nossa expulsão de lá pelas grandes perdas iniciais da vida (a perda da união perfeita com a mãe, do primeiro amor exclusivo com ela etc.) e, mais do que isso, pelo trauma de nascer e de crescer.
Concordo: existe uma dor de crescer quase universal, uma dor do espaço aberto, da autonomia e da liberdade de se arriscar. E crescer talvez seja um pouco como sair sozinho de uma festa legal.
O fato é que só tenho uma imagem de inspiração bíblica, em casa. É um esboço a pena, italiano, do fim do século 16, que representa Deus expulsando Adão e Eva do Paraíso Terrestre.
Nota: na minha coluna de 15/12, imaginei que Bob Dylan tivesse escolhido a música que Patti Smith cantou na entrega do Nobel. Patti Smith contou na "The New Yorker" que a escolha foi dela. Agradeço Eugênia Motta que foi a primeira a me assinalar o texto de Smith.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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