Mãos que eu afaguei
Marluci enrolava meus bobes no camarim da televisão, quando comentou que o depoimento do Demóstenes no Conselho de Ética, em curso naquela tarde, lhe parecia convincente.
A simpatia da cabeleireira escorreu pelo ralo junto com o Nextel do senador pago por Cachoeira. Já ao anoitecer, ela havia recuperado a sua habitual indignação.
Eu também, em frente à TV naquela manhã, fui tomada por um sentimento involuntário de compaixão. "Pelo menos ele está falando!", pensei. O emudecimento na CPI do dia seguinte, a exemplo do Nextel, destruiu a longa defesa da véspera. Mas quem, no lugar dele, cometeria o desatino de abrir a boca?
A máquina eleitoral é um leviatã voltado para os próprios interesses que opera na ilegalidade. A política corrompe ao mesmo tempo que produz desenvolvimento e riqueza. Se não para todos, pelo menos para os que sobrevivem nela.
O poder vicia. No vício, perde a inocência. E, se todos têm culpa, ninguém é culpado.
Há sete anos, quando as denúncias do mensalão espocavam nas primeiras páginas dos jornais, fui almoçar com um amigo em um restaurante extinto do Leblon. Já pagando a conta, percebi que na única mesa ocupada, bem na saída do salão, estava sentado José Dirceu.
Roberto Jefferson entoando vingança, o próprio Dirceu, no documentário "Entreatos", declarando possuir um cofre cheio de filmes bem intencionados que poderiam arruinar a reputação dos que concordaram em aparecer neles, a careca do Valério, Delúbio dopado, Lula, o PT e o PSDB, a Telecom e o Opportunity; sem falar na Casa Civil, no movimento estudantil, na guerrilha, nas plásticas e na clandestinidade mantida até diante da mulher; 50 anos de história me contemplavam em meio às mesas vazias, bem na passagem de quem queria chegar à porta.
Catei a bolsa e sai batida, eu não o conhecia, não era agora que iria me apresentar. Receei que parecesse que eu estava lhe virando a cara. Eu não me sentia pior e nem melhor do que Dirceu, certamente menos audaciosa. Ele me provocava a consciência incômoda do quanto ignoro as regras do jogo político e de como vivo à beira, e à mercê, da corda bamba dos que orbitam o trono.
Anos depois desta tarde, em um forró da Flora e do Gil, durante uma conversa com o meu parente sardo, Sérgio Mamberti, levantei os olhos e dei de cara com um homem cujo nome não me vinha à cabeça. "Oi, Ferrrnanda", ele disse, com um sotaque carregado do interior paulista. José Dirceu! Era uma de suas primeiras aparições sociais depois de uma longa reclusão pós-escândalo.
A mesma paralisia do Leblon, a força gravitacional em torno daquela entidade, somada à culpa de não ter me dirigido a ele no longínquo almoço carioca, agravaram a falta de jeito. Levantei uma mão e acenei com um sorriso tímido, de longe.
O desconforto por ter sido incapaz de encarar José Dirceu pela segunda vez me perseguiu por toda a festa. O medo de que ele houvesse notado as dúvidas insolúveis que me invadem na sua presença.
Muitos o desprezam, outros o consideram a encarnação do exu capeta, alguns alegam que todos agem igual; corre a lenda de que, nos tempos de gato incendiário, Dirceu fazia amor sobre a bandeira nacional.
É impossível se manter indiferente diante de uma reputação suicida como a dele.
Como nos insuperáveis romances do século 19, a vilania e o heroísmo se misturam de forma explosiva em José Dirceu. Para além do bem e do mal.
No fim do arrasta-pé, sentada mais uma vez ao lado de Mamberti, senti, pelas costas, um vulto se despedir dos demais. Me virei, era Dirceu. Ele pousou a mão nos meus ombros e eu, com o desejo culposo de reparar o mal-estar dos últimos encontros, segurei sua mão num movimento inconsciente e a beijei.
Uma fração de segundo após o ato, descolei os lábios da pele morena e olhei para os lados, aterrorizada com a ideia de ter sido pega por um fotógrafo em um momento tão íntimo e complexo da minha madureza atormentada.
É como tão bem resumiu a esposa de Cachoeira: "Isso é uma coisa que poderia acontecer com qualquer um".
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