sexta-feira, 18 de março de 2022

Caso Marielle ensina quase tudo



Há quatro anos, uma mulher negra, mãe e bissexual, da favela da Maré, formada em administração pública e sociologia, eleita vereadora, foi assassinada depois de 15 meses de mandato, com 16 projetos de lei apresentados e sete aprovados (sobre combate a assédio sexual, garantia de creche e proteção a mototaxistas, por exemplo).

Antes mesmo de seu corpo ser retirado do carro, com quatro tiros na cabeça, uma campanha massiva de difamação explodia nas redes: mulher de traficante, eleita com dinheiro do tráfico, dizia a mentira. Plataformas digitais não controlaram a ofensiva. Nessa campanha, contribuiu até desembargadora do TJ-RJ, ainda não julgada pelo Conselho Nacional de Justiça.

A ação e sua estratégia de comunicação foram coreografadas pelo MBLO (Movimento Brasil Livre do Outro). Ativo há alguns séculos e alérgico à liberdade na diferença, as grandes derrotas do MBLO foram a abolição da escravatura, a Constituição democrática de 1988 e a inserção do país em tratados internacionais de direitos humanos.

O maior militante do MBLO no século 21, um homem branco, heterossexual por autodeclaração, expulso do exército, com 3 décadas de vida parlamentar sem uma única construção institucional, que conserva na cabeceira um livro de torturador, eleito presidente logo depois, viu no assassinato "apenas mais uma morte no Rio de Janeiro", evitando falar mais pois seria "polêmico demais".

Em quatro anos, o caso criminal avançou pouco. Quem matou, quem mandou matar e por qual motivo são as 3 perguntas que incumbem à polícia e a promotores investigar. Encontraram resposta para a primeira. Dois ex-policiais militares teriam sido executores. Há três anos presos, aguardam julgamento. Falta descobrir os mandantes e suas razões.

Cabem à democracia e aos observadores do sistema de justiça, porém, outras três perguntas: o que impede que se saiba quem e por que mandou matar; como se consegue impedir que se saiba quem e por que mandou matar; e como consertar buracos de uma arquitetura institucional que permite interferência política autointeressada.

O processo já levou quatro anos e tem futuro incerto. Autoridades argumentam, com razão, que o caso é "complexo". Boa parte dessa complexidade, porém, é menos técnico-jurídica do que política. Não explicam a demora e o bate-cabeça. Muito menos justificam.

Até aqui, muita coisa deu errado: falhas grosseiras na coleta de imagens do trajeto do carro feita por câmeras (grosseiras mesmo para o padrão de baixa qualidade investigativa); falta de continuidade de autoridades investigativas (cinco delegados, renúncia de promotoras por alegação de interferência externa, adoção tardia de uma força-tarefa); incapacidade de rastreamento da origem da arma do crime, de uso exclusivo por forças especiais da polícia, e das munições.

Ludmila Ribeiro, pesquisadora da UFMG, entre muitos outros analistas, já criticou a falta de coordenação entre investigadores e de "estabilidade da equipe", que contribuem na eficiência da solução de homicídios, além da falta de prioridade real ao caso. E ressalta que o envolvimento de ex-policiais "torna a corporação vítima dos seus próprios métodos".

"Solucionar" o homicídio de Marielle e Anderson não refundará a democracia brasileira. A esperança triunfalista arrisca perder de vista os desarranjos institucionais que facilitaram o crime e emperram sua apuração. Com ou sem condenação, permanecem as condições para o próximo descalabro.

A solução desse crime, claro, não é menos necessária por isso. Ajudaria, além de fazer justiça, a energizar um projeto democrático e de futuro. Pois o atentado contra a vida de Marielle ensina quase tudo. E a biografia de Marielle inspira muitos caminhos.

Eventual ausência de envolvimento da família Bolsonaro, ou eventual ausência de prova do envolvimento da família nesse nexo de causalidade específico, não cancela o fato de que o propulsor do êxito político de Bolsonaro por 30 anos é o mesmo que matou Marielle. As conexões são documentadas e até fotografadas no churrasco e na pescaria.

Isso, por si só, não basta para condenação penal do indivíduo, mas faz jorrar evidência sobre a topografia de onde esse movimento político germina. Direito penal, prova jurídica e prisão importam muito, mas importam menos. A presunção de inocência não apaga a história.

Esse território conecta Rio das Pedras, Vivendas da Barra, gabinetes da Câmara de Vereadores, da Assembleia Legislativa e quartéis; a contabilidade de franquias de chocolate, barraquinhas de açaí e imóveis comprados com dinheiro vivo; condecorações a milicianos e propostas inusitadas para "legalizar milícias". Para Jair, lembremos, "enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será muito bem-vindo".


Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo


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