sexta-feira, 4 de março de 2022

Agora


Agora que gostou do rapaz, tomou o cuidado de apagar o número dele do celular. Aceitou, logo na tarde seguinte, tomar café para conhecer outro homem. Não gostou desse outro e, por isso mesmo, passou a lhe dar mais atenção. Como era bom mandar links de músicas para sujeitos que, caso não respondessem ou fossem somente mais uma vez tediosos, apenas não importavam. E olha que, para pessoas em tratamento para rinite e ansiedade generalizada, até um filhote prematuro de pólen estraga uma tarde.

Topou, na sequência, viajar no feriado com a família e se agarrar à única coisa que dá pra fazer quando gostamos tanto de alguém: sumir. Queria a opção "nenhum risquinho" no verificado do WhatsApp. Me deu vontade de apontar o ato falho, a relação com risco e risquinho.

Era uma mulher de 30 e poucos anos que tinha decidido algo muito importante na virada do ano: nunca mais ser a idiota que, por essência, constituição e repetição, ela era. A idiota que mal conseguia andar em linha reta, ereta, altiva, quando precisava esconder entre ombros estreitos sua imensa expectativa. Estava farta do seu comichão desenfreado por preenchimento.

Agora que gostou do cara, seu corpo todo trabalhava para aniquilar as inúmeras delicadezas e melodias daquele encontro. Ela precisava ser rápida para que sua mania de inventar não sobressaísse à sua necessidade de equilibrar números e quantidades: tantos dias para aparecer, e tinha que ser pouco, tantos dias para ceder, e tinha que ser rápido.

Eu a observava curiosa. Será que ela sabe que a coisa não acontece porque não acontece, acaba porque acaba e dá certo porque dá certo? E que esse mistério é intolerável para controladores, mas não se entregar ao mistério seria a morte para românticos (e românticos controladores são uma grande desgraça, bem-vinda ao clube)? Com sua idade, eu já me julgava maduríssima. E ela me contava: "Sabe, eu era meio feiosa na época da escola. Feia e dura de grana. Agora, com 34, eu preciso aprender a dizer não para projetos e amores. Faz sentido?". Então ela concluiu: "Esse desespero é coisa de mulher desprovida de beleza ou de bens".

Fiquei com vontade de dizer que não era não. A menina sentada à minha frente, que não tinha idade pra ser minha filha, mas que naquele momento eu amei como se fosse, era só uma dessas pessoas que querem tanto e tanto que, apesar de acharem que têm a pele vincada pelas recusas e pelos finais, vão seguir por toda uma vida andando meio arqueadas, prontas pra chafurdar de cabeça na areia movediça. Não são pessoas que buscam estrelas ou montanhas altas. São pessoas que buscam o buraco no peito do outro pra ver se dois buracos entrelaçados formam um infinito. E eu já estava ficando brega de tanta afeição por ela.

Ela me contava que enquanto gostava do rapaz, mais e mais, de frente pra ele, foi murchando o rosto, bocejando, fazendo cara de "preciso ir embora". Queria pular para o outro lado da mesa. Lamber seu rosto. Enfiar a cara em sua orelha feito um cachorro alucinado. Vamos agora. Desse primeiro encontro já fazer três filhos. E comprar uma casa. Vamos agora. Desse primeiro encontro já transar sete vezes. E dizer "te amo". Vamos agora. Desse primeiro encontro já não suportar isso tudo que nem sentimos. E terminar. E separar. E você me deve 50% do valor do imóvel que nunca visitamos. Mas ela foi embora, foi ser normal. A que custo.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário