sexta-feira, 25 de março de 2022

O prazer feminino


Na última quinta-feira, eu estava me arrumando para uma festa quando minha filha chegou com seus enormes olhos cheios d’água e implorou para que eu não saísse. Antes de ela terminar a frase, eu já estava descalçando os sapatos e arrancando a maquiagem com um lencinho umedecido.

A avó veio pelo corredor, vestida com um pijama de flores e trazendo pipoca. Ela abriu um enorme sorriso ao me ver deitada na cama com a criança. Na cabeça dela, assim como na minha e na de tantas e tantas mulheres, o certo é abrir mão de qualquer prazer por um filho.

Apesar do meu recente divórcio, aquela ainda era uma casa "de família", e era como se eu pudesse ver o coração da senhora bater mais aconchegado. Em seus olhos passou toda a cerimônia da minha canonização. Eu estava morta ali, mais uma vez desistindo de uma farra, mas eu era uma santa. Uma mãe de verdade. Minha filha era muito abençoada. E que mulher, lá no fundo, no que nos resta de machismo estrutural e lembranças das aulas de religião, não quer se sentir nessa posição desgraçada?

Enquanto a Peppa Pig fazia alguma malcriação na TV, lembrei que naquela mesma tarde eu estava indo ao supermercado e Rita veio com seus enormes olhos cheios d’água e implorou para que eu não saísse. Ignorei completamente, porque eu precisava comprar comida. Foi fácil deixá-la esperneando na porta do elevador.

No dia anterior, quando tinha que ir a uma reunião de trabalho, lá veio Rita com seus enormes olhos cheios d’água. Mas eu fui, porque é necessário garantir o dinheiro que compra "o leite das crianças" —e também porque amo trabalhar, ser independente, livre, me arrumar, sair, convencer pessoas das minhas ideias, seduzir, ter dinheiro para comprar qualquer futilidade para mim, mas essa parte não entrava na cerimônia de canonização.

Concluí que, se eu tivesse um parente morrendo no hospital, e precisasse passar a noite cuidando dele, eu jamais teria desistido de sair. Se eu fosse médica, ou segurança, ou babá —e aquele fosse meu turno da noite—, eu iria. Se eu estivesse com uma infecção alimentar e o médico me ordenasse ir a um pronto-socorro, eu obedeceria. Se fosse uma missa de sétimo dia, eu já estaria lá. Valia frustrar minha filha em nome de trabalho, tristeza, dor, despedida, finitude, doença e caganeira. Valia a pena aturar aquela carinha na porta, desconsolada, por qualquer motivo "sério".

Mas por causa de uma festa? Por que se divertir, para nós mulheres, sobretudo para as mães, não passa de uma grande besteira, uma leviandade, se para os homens é o que existe de mais importante, necessário, um regulador fundamental da sanidade e um item essencial para manter a qualidade da espécie?

Então, enquanto a Peppa Pig fazia mais uma de suas malcriações, eu dei um pulo da cama. "Eu vou!" Só faltou colocar a mão no peito e fazer meu discurso de frente para uma bandeira com o desenho da minha vagina: a mamãe precisa te ensinar, nesse mundo machista dos infernos, a nunca desistir do seu prazer e da sua felicidade! Não existe nada no mundo mais importante do que você, nada que eu ame mais do que você, contudo ainda sobra tanto afeto e desejo dentro de mim. Ainda preciso de tanta realização, deleite, excitação e amor para fora da maternidade. Talvez eu beije muito hoje. E talvez faça mais coisas bem gostosinhas também.

O que eu disse não foi nada isso, fui breve, didática e poupei a criança de certos detalhes. Rita continuou muito brava, e às duas da manhã eu voltei correndo. Na próxima fico mais.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário