Lembro bem: no começo da pandemia, houve gente que resolveu aproveitar o tempo dentro de casa. Muita coisa parecia possível: entrar num programa sério de fitness, aprender italiano, voltar a tocar um instrumento. Artesanato, quem sabe? Daria até para ganhar algum dinheiro.
Ocorreram casos de sucesso. O mais comum, entretanto, foi a vitória da entropia, da rotina, da falta de imaginação e de vontade.
O fenômeno ganhou um nome em inglês: as pessoas entraram em "goblin mode". Modo gnomo, ou, talvez mais propriamente, modo ogro.
Nem falo do consumo exagerado de bebidas alcoólicas. As pesquisas variam, e às vezes aumentam a confusão: li, por exemplo, que as vendas online de bebidas cresceram de modo alarmante durante o confinamento. Mas isso é óbvio —toda venda online cresceu na pandemia.
Outra notícia dizia que "as mortes por intoxicação alcoólica cresceram enormemente" —mas foi dado menor destaque ao fato de que mortes por embriaguez no trânsito caíram fortemente.
Não importa: se os bons amigos Hilton e Jaiminho deixaram de se ver toda sexta-feira no bar, é provável que tenham matado a saudade um do outro dentro de casa mesmo, confiando na companhia de outra boa amiga, a garrafa.
O efeito "ogro", em todo caso, é mais amplo. Hilton e Jaiminho não tiveram garçom e ajudante para deixar as garrafas vazias no lixo. O homem ou a mulher que ficam sozinhos dentro de casa vão naturalmente relaxar na limpeza.
Tive comportamentos contraditórios. Comecei a reparar em sujeirinhas e gastei dinheiro com produtos milagrosos. Ao mesmo tempo, tive um comportamento pouco admirável.
Depois de uns meses, acabei cedendo e resolvi chamar de volta a faxineira, para visitas semanais. Mas tive vergonha do que ela poderia encontrar de nojento, de escandaloso, de depressivo no ambiente aos seus cuidados.
Comecei a deixar minha casa "preparada" para quando ela viesse. Assim como na frase "para inglês ver", dediquei um pouco de tempo no esforço de deixar as coisas "para a faxineira ver".
E nisso talvez esteja a chave do "comportamento ogro". O olhar dos outros civiliza. O olhar do estrangeiro, mais ainda. Não se trata só do descalabro de quem vive sozinho —e começa a achar que banho e barba todos os dias não passam de uma convenção, de um artificialismo social.
Há anos, fiz um curso intensivo de inglês numa escola bem pequena, que era dirigida quase como uma empresa familiar. As aulas eram diárias, e, quando chegava sexta-feira, a dona organizava uma espécie de "brunch" coletivo. Cada pessoa trazia um prato, e se comemorava o fim de semana com uma comilança.
Para deixar todos à vontade, a dona era a primeira a falar com a boca cheia. "Nhow are nhyou? Nhare nhyou happy wnhith nhyour worgress in Enwlish?"
Tenho certeza de que era de propósito. Ela queria que nos sentíssemos em casa.
Pelo que sei, as maneiras à mesa conheceram deterioração semelhante desde que as famílias se isolaram com a pandemia de Covid.
Fragmentos de alface são extraídos, à vista dos outros, com o dedo indicador. Falas habituais se tornam incompreensíveis pelo excesso de arroz. Narizes, ouvidos e outros orifícios vão sendo explorados com pouca cerimônia. A civilização declina, no espaço circunscrito do clã.
Voltamos, também, à mentalidade dos humanos que se sentiam sob ameaça. Ressurgiram instintos de acumulação. Guardo ainda hoje os desinfetantes e tubinhos de álcool em gel comprados ao primeiro pânico.
Síndrome da fome noturna: não sabia da existência disso até vivenciá-la. A ansiedade surge do excesso de exposição ao computador, que causa insônia, que por sua vez aumenta o tempo que passa depois do jantar, e termina no brutal assalto à geladeira às quatro da manhã.
Adeus, planos de sair da pandemia como o "Davi" de Donatello! Adeus, projetos de sair por aí falando em alemão! Tiro a máscara cirúrgica. A tonalidade esverdeada de Shrek se expõe à luz das ruas. A barriga busca lugar entre a cadeira e a mesa do restaurante. Nem tudo está perdido. As orelhas de Shrek eram minúsculas.
As minhas cresceram um pouco, pela pressão do elástico.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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