Viver mais de três anos sob um governo anti-humanista, tendo que reagir dia após dia aos disparates calculados de uma aberração política e moral como Bolsonaro, deixa a gente meio embotado.
É quase inevitável adiar certas pautas humanistas para algum futuro menos inóspito, como se tratar delas fosse um luxo descabido quando a maior parte da população luta por direitos básicos como comida, teto, dignidade, justiça.
De certa forma, é luxo mesmo. A sobrevivência vem em primeiro lugar, e a sombra até há pouco impensável de uma guerra nuclear torna tudo ainda mais escuro. Mas um livro recém-lançado sugere que vale a pena pensar na vida como se houvesse amanhã –vai que haja!
Falo de "Gramática da Norma de Referência" (Parábola), dos linguistas Francisco Eduardo Vieira e Carlos Alberto Faraco. Espera aí –uma gramática? O que um livro didático tem a ver com a luta do bem contra o mal?
Muita coisa. Sob o título nada sexy se esconde um livro precioso, materialização tardia de algo que a cultura brasileira devia a si mesma desde o século 19: uma gramática normativa sóbria, até careta, com a ousadia calma –e revolucionária– de espelhar a língua falada aqui.
Isso significa ser capaz de, sem arroubos militantes, enunciar verdades solares como estas: "A próclise é a colocação [pronominal] normal; a ênclise é a colocação atípica e, portanto, seus casos precisam ser especificados". (Lembrando: "me dá" é próclise, "dá-me" é ênclise.)
Mas isso não é óbvio? Se liga: na língua brasileira, sim; entre falantes portugueses, na maior parte das vezes soa mais natural o pronome oblíquo vir depois do verbo.
Diante de diferenças como essa, a resposta de muita gente tem sido declarar que por aqui falamos "errado" e tentar espremer nossa língua num padrão artificial. A marteladas, como um bebê com seu brinquedo de encaixar.
Se lembra de quantas vezes lhe disseram que é proibido começar frase com pronome oblíquo (como acabo de fazer)? Proibido por quê? É assim que falam os brasileiros, inclusive os plenamente escolarizados, tudo indica que há séculos.
A colocação pronominal à nossa moda é uma de muitas obviedades linguísticas que o livro de Vieira e Faraco, quinto e último volume da coleção "Escrever na Universidade", retrata ao manejar dados concretos sobre uso linguístico em vez de dogmas.
Em outras palavras, ao mudar o foco da velha norma-padrão –arbitrária, contraditória, distante até da norma portuguesa– para a norma culta da vida real, que os autores chamam de "norma brasileira de referência".
Num livro de anos atrás, o mesmo Faraco cunhou a impagável expressão "norma curta" para nomear o cipoal de regras bestas e pegadinhas que ainda hoje assombra o senso comum e sustenta um aparato normativo que envolve professores de português, revisores, consultores midiáticos e formuladores de concursos.
Mais conservadores do que os velhos gramáticos conservadores –mesmo porque mais ignorantes–, os guardiães da "norma curta" fazem um estrago incalculável em nossa autoestima linguística e na qualidade do português que se aprende nas escolas.
Claro: será sempre mais difícil ensinar o que nunca existiu, aspiração de uma elite que achou melhor falar mal um idioma idealizado, mas branco, do que abraçar a língua mestiça das ruas.
E assim voltamos ao bolsonaresco presente. É uma questão política urgente ensinar aos brasileiros a língua que os brasileiros falam.
Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário