quarta-feira, 16 de março de 2022

'Os Olhos de Tammy Faye', indicado ao Oscar, mostra pastores corruptos


Quando vejo esses pastores na televisão, prometendo curas e arrecadando dinheiro, seguro bem firme o livro que acompanha os passos dos homens de bem. A saber, o Código Penal.

Se não for para jogar na cadeia vários deles, eu me contentaria ao menos com uma lei equivalente à da escola sem partido. Igreja sem partido: por que não? A campanha pelo menos inibiria um pouco a pilantragem desses profetas de cabelo pintado.

Mas minhas opiniões mudaram um pouco depois de assistir a "Os Olhos de Tammy Faye", filme de Michael Showalter com Jessica Chastain no papel de uma pregadora evangélica. Ela está entre as indicadas ao Oscar, e estou esperando que o filme apareça na Netflix para poder revê-lo.

A história é real. Tammy Faye (1942-2007) fez sucesso na TV americana nos anos 1970, junto com seu marido Jim Bakker.

Ele terminou preso, depois de muitos tombos e golpes em investidores. O casal usava o dinheiro de projetos imobiliários e doações para se entregar a uma orgia de gastos pessoais.

Desde criança, Tammy acreditava ter sido chamada por Deus. Joga-se no chão, desmaia, sai "falando em línguas". A família, muito simples e crente, não duvida, e ela muito menos.

Ocorre que, num ambiente que era tradicional a mais não poder, ela não tem nada de reprimida nem de moralista. Adora a vida, adora sexo, considera o dinheiro e a alegria uma prova do amor de Deus.

O senso que ela tem de liberdade é admirável. Paquera abertamente o seu colega no curso de teologia. Inventa um teatrinho de bonecos para crianças evangélicas. Canta muito bem. Larga o curso e se lança no showbusiness.

Mais tarde, seu programa televisivo fará qualquer negócio em nome de Jesus. E, quando digo qualquer negócio, não penso necessariamente em coisa ruim. Em meio a cânticos e versículos, ela faz propaganda de uma bombinha peniana que resolve problemas de ereção.

Afinal, diz ela, o que Deus pode ter contra a ereção? Nos anos 1980, foi mais longe. Abriu os braços da sua igreja a pacientes de Aids —isto, quando a ultradireita evangélica atribuía a doença a castigo divino. Ao mesmo tempo, hesitou em fazer campanha política para Ronald Reagan. A pressão de outras igrejas foi brutal e pegou em cheio o marido de Tammy Faye.

Não era só questão de fé. O casal organizara uma estrutura de comunicações e uma rede de doadores que fazia concorrência a outros pastores. Razões de mercado se provam, ainda uma vez, mais poderosas do que qualquer divergência teológica. A guerra por doações, a quantidade de esquemas fraudulentos e de aventuras empresariais haverá sempre de mobilizar os instintos dessa parcela especial do empresariado comunicativo.

São pilantras? Em boa medida, sim. Arrancam dinheiro de milhares de desgraçados e idiotas, que até se endividam para pagar as mansões, as joias, os casacos de pele de Tammy e sua turma.

O mais interessante, ou pelo menos o filme me fez acreditar nisso, é que eles são ao mesmo tempo inocentes.

São movidos pela crença de que, rezando, tudo dará certo. Se os negócios começam a ir mal, e se investidores começam a analisar as contas e pedir o dinheiro de volta, isso é apenas a travessia do deserto até que todos cheguem à terra prometida.

Não há atitude de Tammy Faye, louvável (caso da Aids) ou desprezível (linha direta para doações ao vivo), que não encontre justificação religiosa, na qual ela parece acreditar sinceramente. Talvez porque muita religião, no fundo, seja apenas uma questão de linguagem. Tudo o que o casal faz, na alegria da fraude e do sucesso, é explicitado com agradecimentos à bondade de Jesus.

Não será um pouco assim com todo mundo? O ateu convicto não deixa de empregar as expressões "se Deus quiser", ou "graças a Deus". Um frequentador moderado de missas sonolentas ouve o padre falar de vida eterna. Acredita literalmente?

Às vezes; raramente; quase nunca. Dificilmente visualiza, imagina concretamente o paraíso. São palavras que lhe fazem algum bem, ou que não fazem ruído para ele.

Há uma doença ou morte na família. É vontade de Deus, vamos rezar, tudo terminará bem. Em pouquíssimas pessoas há fervor; o resto são coisas que se dizem, porque o silêncio é mais difícil de manter.

Preso por fraude, Jim Bakker não perde a confiança em Deus. Não se diz inocente, não sofre por ser culpado. Repete as mesmas frases; não está cego para a nova realidade, mas seu vocabulário não tem recursos novos para descrevê-la.

É um enganador, um mentiroso, um cínico —mas também, quem sabe, um inocente. A linguagem de que dispõe não lhe permite ver o que de fato é.

Em alguns momentos, a máscara cai, o desespero chega. Mas a realidade, como a fé, exigiria que o sujeito se convertesse a ela; a ilusão tem, a seu favor, a força de ser um hábito. O desonesto se esquece do que é; também por isso, tantos corruptos se acham vítima de injustiça.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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