Ela estava cansada de ver os noticiários sobre os ataques na Ucrânia impunes e sentiu que precisava fazer algo. Sabia que alguns restaurantes estavam tirando pratos russos do cardápio. Embora fosse apenas uma gota no oceano, uma batata palha no estrogonofe, qualquer boicote poderia ajudar a impedir
os ataques de Vladimir Putin.
Recolheu suas garrafas de vodca e despejou o conteúdo na privada. No escritório, procurou por autores russos. Jogou fora seus Tolstóis e Dostoiévskis. Não precisaria mais terminar o "Guerra e Paz" que começou há 15 anos.
Se estava boicotando um país por violar direitos humanos, deveria contemplar todos. Não podia ser hipócrita. Mesmo porque a palavra "hipócrita" tinha origem na Grécia, que escravizou e dizimou povos.
Pesquisando na internet, viu que os Emirados Árabes Unidos violam os direitos humanos e bombardeiam países vizinhos. Abriu seu álbum de fotos e jogou fora todos os registros de sua lua de mel em Dubai.
Reparou que usava o Google, ferramenta de um país que invadiu Iraque e Afeganistão. Migrou para o TikTok, mas, além das dancinhas que não ajudavam sua pesquisa, era um aplicativo da China, país que invadiu o Tibete e também viola os direitos humanos. Jogou todos eletrônicos chineses no lixo. Ouviu protesto do marido, mas lembrou que o casamento é uma instituição católica, que queimou bruxas e saiu de casa sem se despedir.
Pensou em pegar o carro, porém lembrou que o combustível vinha de regimes que ela precisava boicotar. Saiu de bicicleta, mas logo desistiu porque se tratava de uma invenção alemã, nação com um passado terrível.
Saiu pelas ruas caminhando, descalça, pois descobriu que os calçados tiveram origem no Egito, uma outra ditadura. Sentiu fome, mas não podia comer um hambúrguer imperialista, um misto-quente de franceses colonialistas ou uma esfirra da ditadura síria.
Foi encontrada alguns dias depois, agonizando de sede em protesto contra o saneamento básico, uma invenção dos romanos. Suas últimas palavras foram algo como "dwinir koplovis utironi", um idioma sem nenhuma ligação com ditaduras, que ela mesma criou e, por isso, ninguém conseguiu entender.
Texto de Flávia Boggio, na Folha de São Paulo.
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