quinta-feira, 24 de março de 2022

O Rio de Janeiro de perto enlouquece, e de longe faz falta


O leitor urbano talvez não terá tido a sorte de ser escolhido como hospedeiro de um micuim. Aconteceu quando eu tinha uns oito anos. Não sei se há um índice métrico pra coceiras. Acredito que o filhote de carrapato-estrela, a despeito do tamanho milimétrico, provoca a maior cafubira que um ser humano pode experimentar.

Nunca vi tanto comichão, por tanto tempo, e nos lugares mais irritantes. O bicho gosta das nossas dobras, debaixo do braço ou da virilha, isso se você der sorte. Meu primo Miguel hospedou por um bom tempo um carrapato-estrela no saco escrotal, e as tias tinham que ajudá-lo a mergulhar as bolas num copo de água gelada com alguma substância anti-inflamatória.

Meu micuim de estimação morou em mim por poucos dias mas pareceram séculos, porque foram poucos os minutos em que ele me deixou pensar em outra coisa. Mas o pior, por incrível que pareça, veio depois que ele foi embora, carregado por uma pinça.

Ao partir, o bicho não deixou dor, nem marcas, mas algo pior que isso: a saudade. Tinha poucos anos de idade mas lembro da estranheza de sentir algo tão complexo quanto o vazio. Percebi que minha vida tinha se organizado ao redor daquele comichão, e tinha ficado órfão sem ele. Olhava pra minha pele e faltava alguma coisa naquele mar de epiderme virgem, sem picada, sem função. Minha virilha tinha se transformado num terreno baldio.

Por que estou falando de carrapato? Fazia tempo que não saía do Rio de Janeiro. E percebi que minha relação com esta cidade parece muito com minha relação com micuim. Passo os dias me irritando com ela, mas quando me afasto fico órfão da coceira.

Essa cidade coça nos lugares mais irritantes —mas detesto quando para de coçar. Assim que saio do Rio, começo a sonhar com ele. Esqueço tudo o que me enlouquece na cidade e me sinto culpado por isso, passo a me odiar por não odiá-la. Mal me afasto do Rio e me torno um bairrista inveterado. Não suporto que alguém fale mal da cidade na minha frente. As feridas cicatrizam e não consigo fugir do saudosismo.

É um paradoxo: não entendo por que amo essa cidade, mas entendo menos ainda como é que alguém consegue não amá-la. "Quando me perguntam ‘por que você mora em Nova York?, não sei responder", diz a Fran Lebowitz, "só sei que tenho profundo desprezo por quem não tem coragem de morar aqui."

Ouvi uma vez de uma esposa, preocupada com a demora do consorte: "marido quando atrasa preocupa, quando chega incomoda". Me senti contemplado. O Rio de Janeiro, de perto, enlouquece. De longe? Faz falta.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

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