Às vezes a gente não se dá conta, mas o mal-estar fica ali, triangulando entre cérebro, estômago e boca: quer dizer que falamos errado? O idioma que aprendemos no berço não passa de uma versão bastarda de certa língua para sempre estrangeira?
Me refiro ao estrago que a brigada de guardiães da "norma curta" faz à nossa autoestima cultural e à qualidade do ensino de português em nossas escolas. Sim, esta é uma continuação da coluna anterior, que tratou da ótima "Gramática da Norma de Referência" de Vieira e Faraco.
Para as patrulhas da norma-padrão, armadas de canetas vermelhas, o português brasileiro é um coitado sem modos e cheio de vícios que não consegue largar, por mais cascudos que a gente aplique em sua cabeça dura.
Usar "a gente" no lugar de "nós", como fiz na primeira linha da coluna e voltei a fazer na frase anterior, é um dos sinais da suposta deterioração da língua que esses puristas extemporâneos (século 21, oi!) gostam de apontar.
Na vida real, a gente adora falar "a gente". Sim, a gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer, mas "a gente" é uma coisa que a gente quase sempre quer dizer. Porque a gente não tem cara de babaca —ou tem?
Verdade que, quando está escrevendo, a gente costuma se policiar. Ninguém quer perder ponto na prova, caramba. Às vezes escapa um "a gente" escrito, mas não era pra escapar. A gente sabe que no fundo está errado, que isso de "a gente" é um troço informal, tipo uma gíria, que não cabe na norma culta, certo?
Errado. Ou melhor, a carga de informalidade de "a gente" é obviamente maior que a de "nós". O que não faz sentido é tentar expulsar da norma culta tudo o que é informal, como se só coubesse nela o livresco, o empertigado, o que fica distante da fala e se mete arranhando por ouvidos e almas.
Isso revela imensa ignorância sobre o que é uma língua e em especial sobre o português brasileiro, dono de uma história que merece respeito. Abaixo, uma seleção de usos cultíssimos de "a gente" com o sentido de "nós" colhidos em textos clássicos de nossa literatura (século 19, oi!):
"Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam."
"Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz gosto ver."
"Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos..."
"A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro."
"A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringrir deslavadamente."
"A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca."
"– O mar está de desafiar a gente – disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim."
A esta altura muita gente terá identificado o autor desses trechos; talvez já o tivesse feito antes mesmo de topar com o bandeiroso Escobar. Trata-se de Machado de Assis.
As três primeiras frases são, respectivamente, dos contos "Uns braços" e "Anedota pecuniária" e do romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas"; as quatro últimas, de "Dom Casmurro".
Acho que, com a ajuda do maior escritor nascido neste paisão falante de português, a gente já pode declarar burra e antipatriótica a perseguição movida pelos patrulheiros contra "a gente".
Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
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