Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, na semana passada, repórteres e comentaristas têm dito todo o tipo de barbaridade. Ao tentar justificar sua súbita empatia pelos ucranianos, revelam o quão pouco eles se importam com os outros povos em guerra.
Nem é preciso ler nas entrelinhas. É tudo dito abertamente, sem constrangimento. O jornal britânico Telegraph, por exemplo, escreveu no dia 26 que os ucranianos são "como a gente" e que, por isso, a invasão russa choca tanto. Afinal, os moradores de Kiev assistem à Netflix e têm contas na rede social Instagram. É impensável, por essa razão, que sua cidade seja bombardeada.
Um correspondente da rede de televisão americana CBS expressou semelhante surpresa explicando que a capital ucraniana não é um lugar como o Iraque e o Afeganistão. "Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia", disse ele no ar. "Você não esperaria que isso acontecesse aqui."
Já na rede britânica BBC, um ex-membro do governo ucraniano explicou que estava emocionado porque via "europeus loiros de olhos azuis sendo mortos todos os dias" por mísseis e helicópteros do presidente russo, Vladimir Putin. "Eu entendo e, é claro, respeito a emoção", respondeu o apresentador da TV.
Mesmo na transmissão em inglês da Al Jazeera, rede sediada no árabe Qatar, um comentarista expressou indignação com o fato de que os ucranianos têm que se refugiar em outros países, como a Polônia. São pessoas prósperas, de classe média, não refugiados do Oriente Médio, disse. E piorou: "Eles se parecem com qualquer família europeia que poderia viver na casa ao lado".
Não é que a invasão da Ucrânia não deva preocupar. Está claro o risco de que a guerra envolva outras potências, nas próximas semanas. A Rússia, como todo o mundo gosta de lembrar, tem um grande arsenal nuclear. Os bombardeios e a morte de civis têm, sim, que nos incomodar. Mas sempre, não só às vezes.
Todos esses comentários dão conta da desumanização do chamado sul global. A ideia implícita, e às vezes explícita mesmo, é de que é esperado um país árabe ou africano estar em guerra. É habitual, também, que a sua população tenha que se refugiar. Como se essa fosse a sua natureza, sua essência. O absurdo, impensável, é quando isso acontece com o mundo desenvolvido.
Como o pensador palestino Edward Said explica no seu livro clássico "Orientalismo", de 1978, a maneira com que a gente se refere a determinados povos têm consequências reais.
A desumanização dos árabes e dos muçulmanos pelas potências europeias ao longo dos séculos está diretamente ligada ao projeto colonialista que tanto dano causou no mundo. A ocupação francesa da Argélia, que durou mais de cem anos, dependia da construção da imagem dos argelinos como um povo inferior, selvagem, que precisava da ajuda dos mais avançados.
A essencialização e inferiorização do "outro" é o que permite que alguém escreva, sem titubear, que é chocante o bombardeio dos ucranianos porque, como a gente, eles assistem às séries da Netflix e postam no Instagram. É o que permite, também, um repórter dizer que a Ucrânia é civilizada, ao contrário do Iraque —sem mencionar a ironia de que a Mesopotâmia foi o berço da civilização, na Antiguidade. Sem entrar no mérito, também, que as invasões dos "civilizados" EUA destruíram o Iraque em 2003.
Só com essa empatia toda é que as pessoas conseguem construir essa imagem de cidadãos heroicos empunhando armas nas ruas de Kiev. Quando são os sírios lutando em Damasco, ou os iemenitas aquartelados em Sanaa, eles geralmente aparecem apenas representando o papel de selvagens e de terroristas.
É essa atitude, em resumo, que ajuda a entender por que é que, de repente, o mundo inteiro parece disposto a receber e amparar os refugiados, desde que eles sejam ucranianos, europeus e parecidos conosco. Loiros, de olhos azuis.
Já sírios, iraquianos, afegãos, sudaneses —esses não. Afinal, ser refugiado é a natureza deles. Não há novidade, não há nada de indignante. Que venham nadando, que se afoguem no Mediterrâneo, que se cortem com o arame farpado. É como as coisas são, mesmo.
Texto de Diogo Bercito, na Folha de São Paulo.
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