O Brasil assistiu a três ensaios da Independência no final do século 18 e início do 19. Houve outros, menores, mas os principais são a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817).
Diferentes entre si na dinâmica dos fatos, no perfil dos personagens e no desfecho do enredo, os movimentos derrotados tentaram lograr, cada um a seu modo, a ruptura da relação política com Portugal, que se consumaria em 1822.
Há muito em comum entre as revoltas, no entanto. No plano externo, foram determinantes a inspiração iluminista francesa, crítica do absolutismo monárquico, e o exemplo da independência americana de 1776. No interno, os sediciosos, na percepção da Coroa portuguesa, enfrentaram crises econômicas exacerbadas pelas exigências de um regime que dava claros sinais de estar exaurido.
Além disso, o mundo, e não apenas o Brasil, estava mudando. No Peru, populações indígenas, sob o comando de Tupac Amaru 2º, autodeclarado descendente do imperador inca, investiram em 1781 contra Cusco, a capital do vice-reinado, tendo sido derrotadas pelas forças espanholas. No Haiti, um levante dos escravos em 1794 resultou na abolição da escravidão, algo inédito nas Américas, e na proclamação da independência da colônia francesa, em 1804.
No Brasil, as classes dominantes olhavam para fora com temor; os revoltosos, com esperança.
A um ano do bicentenário da Independência, os três ensaios acumulam novas interpretações, resultado de revisões historiográficas, algumas relativamente recentes.
A Inconfidência Mineira, por exemplo, cresceu com o tempo. Durante boa parte do Império, Tiradentes, seu maior protagonista, foi tratado como traidor. Sua reputação só seria resgatada pelo movimento republicano a partir da segunda metade do século 19, então como mártir, associação reforçada pela opção de retratá-lo à imagem de Cristo.
Ainda assim, quase duas décadas após a Proclamação da República, Capistrano de Abreu, em “Capítulos da História Colonial” (1907), obra que contribuiu para fixar uma interpretação do Brasil, preferiu ignorar o movimento, por considerá-lo insignificante.
O que prevaleceu, porém, foi o entendimento de que a ação irradiada a partir de Vila Rica refletia o conflito de interesses entre as elites brasileiras e a metrópole portuguesa. A tensão vinha aumentando desde o século 17, quando Portugal viu minguar a receita do comércio das Índias e da produção de açúcar, depois da perda do monopólio nessas duas frentes.
A situação se agravou com a necessidade de reconstruir Lisboa, depois do terremoto que destruiu grande parte da cidade em 1755.
Em crise financeira, a metrópole focou a produção do ouro de Minas, a maior do mundo. O cerco à colônia se fechou aos poucos. A sede foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, para ficar mais próxima da zona de extração.
O governo central, sem querer se dobrar à realidade de que o ciclo se esgotava, não abriu mão do imposto anual. Um ano antes de eclodir a Inconfidência, os mineiros deviam a Lisboa mais de oito toneladas do metal, quantidade considerada exorbitante.
O estopim foi a iminência da cobrança da derrama —o imposto que cada um deveria pagar para completar o que a mais populosa das capitanias devia à Coroa. Apesar de atingido pela medida, no entanto, o povo esteve distante da articulação, da qual participaram latifundiários, intelectuais, poetas, empreendedores, religiosos e altos funcionários públicos.
Em “A Devassa da Devassa” (1973), obra central para o estabelecimento da narrativa atual sobre a Inconfidência, o historiador inglês Kenneth Maxwell argumenta que a conjuração foi alimentada pela inépcia da Coroa. Além de fazer uma cobrança irrealista, envolveu “magnatas locais em órgãos do governo, com uma deliberação que raiava o desvario”.
Para Maxwell, referência na historiografia do período colonial brasileiro, esse arranjo “só funcionava em favor dos interesses do Estado quando havia coincidência dos interesses imperiais com os locais”. Ou seja, “sendo divergentes as motivações econômicas”, quase nunca funcionava.
Os desmandos da administração pública eram notórios. Tomás Antônio Gonzaga, um dos inconfidentes, os denunciou nas satíricas “Cartas Chilenas”, que circularam na época em panfletos anônimos. Alvarenga Peixoto, rebelde e dono de grande patrimônio, “meteu a mão nos cofres públicos”, como anota Lucas Figueiredo na biografia “O Tiradentes” (Companhia das Letras, 2018).
Nada havia de revolucionário na Inconfidência. Nenhum líder tencionava alterar as estruturas econômicas. A escravidão seria mantida, de acordo com a opinião da maioria dos inconfidentes.
A exemplo do que ocorrera na independência dos Estados Unidos, alegava-se a predominância de fatores econômicos, já que a região dependia do trabalho da maior população cativa do mundo. A clivagem social fica sugerida até no julgamento dos envolvidos, que resultou em uma só execução: a do único agitador estranho à elite, Tiradentes.
Dez anos mais tarde, a Conjuração Baiana, diferentemente da mineira, seria marcada pela participação popular, o que fica patente no outro nome pelo qual o movimento entrou para a história: Revolta dos Alfaiates.
Além desses artesãos, havia, entre os insurgentes, escravos alforriados, mestiços e militares de baixa patente, como o soldado Luís Gonzaga das Virgens, cuja prisão, em agosto de 1798, precipitou o motim em Salvador.
Ele era acusado de ter colado nos postes de uma das principais cidades coloniais “pasquins sediciosos” manuscritos, em que vazava, com a caligrafia que acabaria por denunciá-lo, aspirações emanadas da Paris revolucionária, defendendo a igualdade social, a garantia de liberdades para todos e o fim da escravidão.
O sentido social da conjuração, no entanto, só seria realçado na primeira metade do século 20. Em “Evolução Política do Brasil” (1933), Caio Prado Júnior, inaugurando o uso de conceitos marxistas para explicar a trajetória do país, considerou-a “um dos fatos mais profundos e de maior significação social em nossa história”.
A conspiração não ficou restrita aos estratos mais baixos da pirâmide social. Pela primeira vez no Brasil, um episódio dessa natureza envolvia homens de diversas origens. Ao lado de pessoas simples e de pouca instrução formal, alinhavam-se intelectuais do porte de Cipriano Barata, que Caio Prado tem na conta de “maior expressão revolucionária” do país.
Com 35 anos, ele estava entre os mais velhos, uma vez que a idade média dos conjurados mais conhecidos era 27 anos (contra 43 anos em Minas).
Juntos, intelectuais maduros e soldados jovens representaram uma ameaça, ainda que fugaz, ao poder constituído pelo pacto colonial. “Na Bahia espraiava-se uma forma de sociabilidade literária totalmente diversa da tradicional”, escreve István Jancsó em ensaio publicado no primeiro volume de “História da Vida Privada” (1997).
Nas reuniões, “compareciam homens de baixa extração —algo impensável pelos ilustrados mineiros uma década antes”. Para o estudioso, “essas reuniões esboçavam a cultura política antiabsolutista pautada por uma nova sociabilidade”.
Sem surpresa, a corda rompeu do lado mais fraco. A repressão ao movimento foi maior contra a gente simples. Luís Gonzaga e um colega de farda foram executados, da mesma maneira que dois alfaiates. Cipriano Barata acabou sendo absolvido, mas não sem antes passar mais de um ano na prisão.
Por fim, a Revolução Pernambucana foi uma resposta à crise econômica que castigava o Nordeste. O preço do açúcar havia despencado em decorrência da maior oferta mundial, ceifando o lucro dos senhores de engenho. Além disso, a Coroa aumentava os impostos para financiar a Corte recém-instalada no Rio de Janeiro.
E, para completar, uma seca severa em 1816 provocou fome e carestia. Foi com esse pano de fundo que as ideias liberais floresceram no Recife e em outras cidades da região.
O movimento autonomista e republicano estourou em 6 de março de 1817, com a ocupação da capital de Pernambuco. Houve confluência de pessoas de vários setores para a formação de um governo provisório. Donos de terras, padres, artesãos, militares, foram muitos os que contribuíram para a insurreição.
Uma vez derrubado o governo de Pernambuco, os novos governantes trataram de esboçar uma Constituição, a primeira concebida por brasileiros, chamada de “lei orgânica”. O texto estabelecia a separação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e proclamava a liberdade de imprensa, desafiando séculos de controle da informação e da opinião. No entanto, a escravidão, que movia a indústria do açúcar, seria mantida.
A experiência durou pouco mais de dois meses, até a capitulação dos revolucionários, em maio, mais uma vez com a punição capital restrita a poucos protagonistas. Embora breve, dos ensaios da Independência, foi o único a ultrapassar o estágio da conspiração, e por isso entraria para a história como a menos desorganizada das revoluções brasileiras.
A historiografia mais recente atenta para o fato de que se deu pouca importância ao aspecto federalista da revolução. Em “A Outra Independência” (2004), Evaldo Cabral de Mello observa que “a fundação do Império é ainda hoje uma história contada exclusivamente do ponto de vista do Rio de Janeiro” para valorizar a unidade nacional propiciada pela monarquia.
“A historiografia da Independência tendeu a escamotear a existência do projeto federalista, encarando-o apenas como produto de impulsos anárquicos e de ambições personalistas e antipatrióticas, semelhantes aos que tumultuavam pela mesma época a América espanhola”, registrou o historiador pernambucano.
Os ensaios da Independência reverberam até hoje no calendário cívico, com feriados nacionais (21 de abril) e locais (6 de março, em Pernambuco). O movimento baiano, o único com caráter nitidamente social, não é celebrado.
Os três, de qualquer maneira, encerram “momentos de condensação da crise geral do Antigo Regime na Colônia”, segundo Jancsó. “Nessa área periférica do capitalismo, as transformações que anunciam a hegemonia burguesa penetravam, lenta mas persistentemente, no fluir da vida social organizada.”
Texto de Oscar Pilagallo, na Folha de São Paulo.
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