J. foi o primeiro antropólogo a traduzir os fundamentais cânticos fúnebres da língua Baruna. Num debate entre J. e o pajé Wa’am’biipi, parte da comemoração pela demarcação das terras Baruna —vitória para a qual os trabalhos e o ativismo do antropólogo não podem ser desconsiderados—, alguém gritou da plateia: “usurpador!”. Tratava-se de M., membro da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste. Segundo M., receber os louros pela tradução de uma obra indígena e comemorar a demarcação ao lado do pajé fazia de J. a versão intelectual dos Pizarros, dos Cortéses, dos Pedro Álvares Cabrais, um “neoextrativista dos bens culturais ameríndios”.
Em alguns meses, a campanha “antitradução”, corrente segundo a qual apenas um membro de sua própria etnia, aprendendo uma língua alheia, poderia verter para ela seu idioma, levou J. de herói a facínora. J. foi afastado da faculdade. Seus artigos encomendados por publicações acadêmicas foram cancelados.
Com o caso J., M. acabou ficando bombadinho nas redes e foi filmado numa praça batendo boca com a namorada. Surgiu então uma campanha barulhenta exigindo a expulsão de M. da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste, pois tratava-se de um “machistx em pelx dx cordeirx”. “Trata as mulheres com a mesma opressão colonialista que finge combater! Lixo humano!”.
M. e a namorada, com quem tinha feito as pazes na mesma tarde, na mesma praça, acharam que seria uma boa estratégia divulgar a foto dos dois num sex-shop, segurando uma cinta peniana, com a qual, revelariam, ela costumava penetrá-lo. Provariam, assim, o quanto M. estava, “através da desdomesticação heteronormativa colo-colonial”, engajado “na subversão dos afetos patriarcais”.
O brinquedo erótico, porém, tinha tiras de couro e suscitou a ira de ativistas veganos, que lançaram nas redes montagens de imagens do casal sobrepostas a de bois ensanguentados em matadouros, trespassados por enormes cintas penianas. Uma semana depois, toda a bancada ativista de São Joaquim D´oeste renunciou ao mandato —dando mais espaço, aliás, para a vereança ruralista, dona dos abatedouros.
Nas redes, os ruralistas chamaram M. de homossexual. M. disse que, se fosse, seria feliz, pois na Grécia clássica e em Roma, por exemplo, relações sexuais entre homens não eram nenhuma vergonha, eram motivo de orgulho.
M. certamente não estava à par das últimas polêmicas sobre o período clássico. Como era comum, àquela época, homens feitos terem relações sexuais com mancebos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e companhia não passavam de pedófilos, abusando de menores “no gozo perverso do privilégio gerontocrático”. Gregos e latinos foram cancelados.
Há quem diga que as únicas obras dignas de mérito em toda a história do pensamento são os livros da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Uma tendência mais recente, contudo, contesta Chimamanda ferozmente, por ter se mudado para os Estados Unidos e escrever em inglês, não em uma das 510 línguas atualmente faladas no país africano. “Feminista e antirracista sendo filha de professor universitário e ganhando em dólar, é fácil”, escreveu um membro do movimento #fuckfakeafrican —em seu iPhone, nos Jardins. “Mas e as mulheres que ficaram na Nigéria? As que não têm o auxílio imperialista de uma Chimamanda? O palanque etnocêntrico de um J.? O privilégio machista e especista de um M.? Todo o lobby branco dos gregos e latinos? Quem as lê? Quem as enxerga, sequer?”.
A. escrevia na Folha de S.Paulo, até que.
Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.
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