Os ipês amarelos estão em festa na cidade. Na secura do inverno, eles se despem das folhas para poupar energia. Fingem-se de mortos, até nos surpreender com o desabrochar de uma profusão de flores, com pétalas que se juntam em forma de cálices delicados que ao despencar dos galhos, rodopiam em espiral, para tecer um tapete amarelo que forra o asfalto e a calçada, ao redor do tronco.
Há de todos os tamanhos. Alguns são crianças que aos dois ou três anos já medem três metros, idade suficiente para criar as primeiras flores, ainda esparsas, distantes umas das outras. Outros, em compensação, são árvores majestosas de tronco rijo, que atingem 20 ou 30 metros de altura, com galhos emaranhados em copas de cinco ou seis metros de diâmetro, nas quais expõem um buquê amarelo visível a quilômetros de distância.
Senhores do que restou da mata atlântica, conscientes de que viver em São Paulo exige resiliência, sobrevivem em qualquer canto: na calma dos bairros, nos jardins das casas, nos parques, na periferia, no centro e no trânsito das grandes avenidas.
Um deles, plantado no canteiro que separa as duas pistas da rua da Consolação, junto ao cemitério do mesmo nome construído no terreno doado pela Marquesa de Santos, é um escândalo florido.
Ergue-se altaneiro sobre um corredor de ônibus que trafegam nos dois sentidos, alheio à fuligem projetada contra seu corpo, dia e noite. Ele retribui com um arranjo floral que encanta os olhos dos motoristas, a agressão perpetrada por eles.
A beleza é efêmera, no entanto: em uma semana as flores serão varridas das calçadas e esmagadas pelos pneus que passam sem vê-las.
No processo de seleção natural, levaram vantagem evolutiva os ipês mais floridos, capazes de atrair mais insetos para a polinização, processo essencial para a formação das vagens compridas que protegem as sementes aveludadas, capazes de viajar ao sabor do vento para perpetuar a espécie.
Como a ciência não é a única forma de entender o mundo, conta a lenda que Deus um dia reuniu as árvores para perguntar em que estação do ano gostariam de florescer. Quase todas escolheram a primavera ou o verão, algumas preferiram o outono.
O Criador disse, então, que a Terra não podia passar o inverno na tristeza desflorida. O ipê se ofereceu como voluntário. Para recompensá-lo, Ele lhe deu caules fibrosos, longevidade, resistência ao frio e à seca e flores multicoloridas: roxas, rosadas, brancas e amarelas, de tonalidades diversas.
A São Paulo da minha infância era cinzenta. Quem pretendesse descansar a vista num verde, precisava ir aos limites da zona urbana. A primeira providência ao abrir uma rua nova era cortar todas as árvores. As únicas cultivadas eram as frutíferas, nos quintais: goiabeiras, jabuticabeiras, mamoeiros, pitangueiras e ameixeiras que nos obrigavam a pular o muro das casas, para colhê-las assim que ameaçavam amadurecer.
A partir dos anos 1950, a cidade começou a ser arborizada, de início timidamente; de forma sistemática nas últimas décadas.
Hoje, entre outras, temos tipuanas de troncos enormes, com copas que chegam à calçada oposta e espalham milhares de flores amarelas miúdas pelo chão; sibipirunas que dão flores empoleiradas no topo das copas, como se fossem canários pousados; jacarandás mimosos de flores roxas; paus-ferro de troncos brancos, muito altos; quaresmeiras; figueiras de folhagem exuberante; e jerivás, palmeiras com cachos de coquinhos alaranjados que atraem pássaros e o zumbido das abelhas.
São Paulo está longe de ser arborizada. A cidade que cresceu como um polvo com tentáculos, que invadiram e devastaram as matas que a circundaram nos tempos da garoa, ainda tem bairros periféricos e favelas com ruas tão cinzentas quanto as do Brás de quando nasci.
A consciência de que o verde e as flores a tornam mais humana, entretanto, ficou clara até para os paulistas que andam para lá e para cá ensimesmados, com os olhos no trânsito, nas calçadas esburacadas e nos transeuntes sem se dar conta da existência das árvores.
Para o ipê da rua da Consolação nossa apatia distraída não faz a menor diferença. Se vier uma epidemia capaz de varrer a humanidade da face da Terra, no inverno seguinte ele estará lá, frondoso, abarrotado de flores amarelas que o vento irá derrubar.
Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo.
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