domingo, 19 de setembro de 2021

Bolsonaro lança bravatas para encobrir cortejo de horrores que país vive


Acredito que tem sido difícil para muita gente, assim como tem sido para mim, assistir ao cortejo de horrores marchando pelo país em velocidade de cruzeiro. A questão que se anuncia é se haverá um fundo neste poço —porque nele decerto já estamos, basta apenas sensibilidade ao olhar à nossa volta.

Quase todos os dias, saio de casa para o trabalho e pelo caminho encontro muitas pessoas nos semáforos, uma pequena multidão segurando cartazes que vão desde um pedido para comprar cesta básica até a prótese para o jovem amputado.

Pelos corredores vazios e desolados do órgão onde eu trabalho, não é muito diferente. Uma auxiliar de serviços gerais me disse que tem se sentindo fraca porque já não se alimenta com proteína animal todos os dias.

O desânimo atinge também os que me cercam, colegas de trabalho sem esperança com o esvaziamento gradativo de políticas públicas importantes para o país, prevalecendo a visão distorcida do atual governo sobre a questão fundiária.

Meu irmão, que é professor, me conta sobre de inquietação com a escola pública onde trabalha. Diz que as aulas noturnas são suspensas com frequência pelo acirramento da violência do tráfico e os assaltos que não param de aumentar. Converso com outro amigo professor, que confirma que o mesmo ocorre na escola onde serve, em uma das muitas periferias de Salvador.

Depois de quase um ano e meio sem minha mãe poder encontrar com as irmãs, fomos visitá-las em um bairro da região metropolitana. No meio da conversa, confessaram estar mais aliviadas porque não houve tiroteio nas duas últimas semanas.

Eu me surpreendo com os métodos utilizados pelas gangues rivais: execuções são gravadas em vídeo e enviadas como virais para os telefones dos moradores do bairro, seguidos de longos textos que expõem as razões para as execuções e a ética que move a violência cotidiana. Decreta-se toque de recolher e ai de quem desobedeça às ordens do “Brasil Paralelo”.

Uma das tias, que vive nesse local há 20 anos, me diz que nunca viu nada parecido. E não há o que fazer a não ser sobreviver a cada dia, porque a violência tem grassado em todo lugar.

As quase 600 mil mortes na pandemia parecem ter se tornado apenas números sempre atualizados pela imprensa. As histórias das vítimas do descaso governamental reverberam apenas no seio das famílias enlutadas.

Parece não comover mais ninguém se morrem 300, 700 ou 4.000 pessoas por dia, enquanto os governos das mais diversas esferas falam em retomada da economia. Uma visão estreita de todo o processo, já que grande parte da população voltou ao mapa da fome e tem apenas sobrevivido, porque a inflação tem corroído o poder de compra e aumentado o número de vulneráveis.

O esperado fracasso do governo Bolsonaro indigna boa parte da população, mas outra significativa cerra fileiras para celebrar seu governo de morte, cujo maior feito não está na educação nem na distribuição de renda, mas na liberação de agrotóxico para as mesas e de armas para a população.

Seus seguidores vestem a camisa da seleção, agitam a bandeira brasileira em passeatas pelo fim da democracia. O “PIB” que o ajudou a se eleger indica que as instituições estão funcionando, desde que seus lucros continuem se multiplicando.

Pouco importa a corrosão do Estado democrático de Direito porque se preocupam somente com o próprio bolso e se seus patrimônios continuam a crescer. Pouco importa se amanhã não haverá Amazônia, Pantanal e terras indígenas.

Boa parte do agronegócio quer mesmo mais terra para explorar, mandando pequenos agricultores para a cidade ou para debaixo da terra. O importante é que paguem sua soja em dólar.

Da mesma maneira os garimpeiros, movidos pela cobiça, se sentem autorizados a agir para arrasar a terra alheia, mas isso só será possível com mais derramamento de sangue dos povos originários. Não irão descansar enquanto não virem tombar o último indígena.

Se tudo isso não é um golpe em marcha, não sei o que mais pode ser. Cada bravata do presidente da República tem como finalidade encobrir o cortejo de horrores que é outro, muito pior que o desfile do Sete de Setembro ou os ataques ao STF.

A crise econômica parece a atingir a classe média e, em proporção muito maior, os mais vulneráveis. Se os analistas políticos ainda esperam por tanques nas ruas para afirmar que já não vivemos mais numa democracia, diante de toda degradação moral, política e econômica que estamos vivendo, é porque perderam o bonde da história.


Texto de Itamar Vieira Junior, na Folha de São Paulo

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