sábado, 18 de setembro de 2021

Bolsonaro é um personagem cuspido e escarrado de Shakespeare


Um crítico literário ilustre, cuja modéstia fora do lugar impede que se lhe decline o nome, disse que os insultos exuberantes contra Bolsonaro obscurecem os argumentos que os fundamentam. Trazem adjetivos para a ribalta e deixam substantivos no breu. É verdade.

Embora xingamentos aliviem a repulsa de quem os profere, não abalam em um milímetro o poder do presidente. Agora o chamam até de corno, o que não é motivo para derrubá-lo —e é isso o que importa aos milhões de miseráveis que ele destroça todo santo dia.

Além de válvula de escape, vitupérios podem beneficiar seu alvo. Muito do que Jair Bolsonaro fala é para causar, fingir-se de mártir, arrebanhar a canalha. É difícil acossar com o verbo uma víbora ou um gambá revestidos de teflon. Eles contra-atacam com peçonha toda própria.

O problema levantado pelo crítico é pertinente porque não dá para engolir sem revide a crapulice presidencial. Há que se achar uma linguagem política para se contrapor à sua paranoia. Um modo de dizer que não desande para as baixarias nas quais refocila como um javali.

Para tanto, Shakespeare pode ajudar. A conspiração gaiata de barões paulistas, na qual um bobo da corte fez palhaçadas adulatórias, poderia estar em “Macbeth”. A santa aliança dos três reis torpes —Collor, Temer e Bolsonaro— é puro “Rei Lear”. Mourão tem algo da bufonaria de Falstaff.

Já Ricardo 3º é o presidente cuspido e escarrado. Ao arrancá-lo do ventre da mãe, a parteira gritou: “Nasceu com dentes!”. Adulto, o rei disse que isso “era prova acabada que rosnaria, morderia e seria um cão completo” pela vida afora.

Atenção para a fake news espetacular: Bolsonaro também nasceu com dentes. Por isso é um mastim que rosna e morde. Aquilo que Ricardo 3º diz de si —“quando passo, coxeando, os cachorros latem para mim”— deve se aplicar ao presidente mal encarado e de ódio à flor da pele.

O parto violento e “antes da hora” —foi abortado— fez com que o fidalgo inglês ficasse corcunda e manco. Sua deformidade exterior correspondia à perfídia interior. A monstruosidade do capitão brasileiro se atém à alma má, aos grunhidos grotescos, ao gestual rude e à carranca horripilante.

Ambos são dissimulados e hostis. Suspeitam da própria sombra. Simulam uma coisa e fazem o contrário. Jogam uns contra os outros. Atiram no lixo aliados dos quais não precisam mais. Foi o que fizeram com dois arrivistas, o duque de Buckingham e o marquês Sergio Moro, vitais para que empalmassem o poder.

Ricardo 3º lutou na Guerra das Rosas, que opôs os Lancaster aos York. Vencedor da guerra civil, seguiu de armas na mão e matou o irmão, a mulher e sobrinhos. Chegou ao trono por meio da força e da manipulação das leis de hereditariedade, pelos Augusto Aras e Kássio Nunes.

Seu reinado, de apenas dois anos, no final do século 15, foi uma sucessão de revoltas sufocadas em rios de sangue. Exerceu o poder à Bolsonaro, confrontando, ferindo, sem construir nada que preste. Morreu na batalha de Bosworth como viveu, solitário e colérico.

Segundo Shakespeare, gritou “um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!”. Sua exumação, em 2012, constatou que o jogaram numa vala anônima sem mortalha nem caixão: foi enterrado como um cão. Bolsonaro disse que vencerá ou será morto. Ricardo 3º teve os dois destinos.

A única que o afronta é a rainha Margaret, cujo marido e o filho foram assassinados por ele. É quando Shakespeare transforma insultos e maldições em grande arte, encontrando palavras exatas para desnudá-lo. Numa nova tradução, eis o que ela diz a Ricardo 3º e Bolsonaro.

“Cala-te, cão, e escuta.
Se o céu tem pragas mais
cruéis que as minhas,
que teus pecados te
apodreçam antes que
a peste tombe sobre ti,
algoz da paz deste
pobre mundo! Que o
verme da consciência
te corroa a alma e
enquanto viveres
suspeite que teus
amigos te traem,
e tome por amigos
traidores de verdade!
Que o sono jamais
feche teus olhos fatais,
exceto para que
pesadelos te torturem
como um enxame de
demônios medonhos!
Tu, porco, ogro, aborto!
Tu, ferido a ferro e fogo
no parto, escravo do
teu corpo torto, filho do
inferno! Tu, vergonha no
ventre da tua mãe! Tu, fruto
podre do escroto do teu pai!
Tu, trapo da virtude, vil!”


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário