terça-feira, 28 de setembro de 2021

Uma heroína apaixonada é tão cafona quanto uma sandália gladiadora


Acabou-se o que era doce: as ingênuas mocinhas da ficção estão com os dias contados. A heroína que só consagra sua jornada quando chega ao altar e diz sim —a clássica deixa para a subida dos créditos— já é considerada tão cafona quanto uma sandália gladiadora.

É chegada a era da protagonista feminina complexa. A mulher contemporânea, independente, empoderada, com mais camadas do que um repolho transgênico. Um prato cheio para uma criadora de conteúdo como esta que vos escreve. Mas construir uma personagem desconstruída não é simples.

A personagem feminina complexa não pode ter inimigas. Ela jamais competiria com outra mana, pois sabe que a rivalidade feminina nada mais é do que um mecanismo para controlar as mulheres, pondo uma contra a outra. Confrontar nossa personagem com uma antagonista inescrupulosa reforçaria o estereótipo de que mulheres são falsas e invejosas.

A personagem feminina complexa não pode amar. A protagonista que se põe em segundo plano por amor, como as Helenas de Manoel Carlos, hoje em dia só arranca suspiros de constrangimento. A não ser que ela seja lésbica. Nesse caso, ela tem todo o direito de amar, ser amada e ser aceita por isso.

A personagem feminina complexa não pode ter defeitos. Se ela for desajeitada, podemos derrapar no clichê de que mulheres não seriam tão habilidosas, aptas somente ao trabalho doméstico. Se ela for insegura, lá vamos nós cair na armadilha do sexo frágil, da mulher que não entrou em contato com seu sagrado feminino e não tem consciência da própria força. Se ela for uma baita de uma escrota, estaremos dando voz ao discurso misógino de que mulheres seriam umas baitas de umas escrotas.

A personagem feminina complexa não pode errar. Uma heroína que toma péssimas decisões pode ser considerada um desserviço em uma sociedade que ainda considera as mulheres menos inteligentes do que os homens. Isso passaria a falsa impressão de que as mulheres se deixam levar pela emoção em vez da razão e ninguém quer assistir a uma protagonista histérica em pleno 2021.

personagem feminina complexa não pode ser perfeita. A perfeição é impossível até na ficção. O mito de perfeição feminina só existe para oprimir mulheres com ideais inatingíveis.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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