Décadas atrás, muito antes do incêndio de 2011 lamber o que restava do teatro Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, num tempo em que ainda existiam as artes cênicas no Brasil, eu e Felipe Pinheiro, meu amigo já morto, fomos assistir a uma montagem de “Os Gigantes da Montanha”, de Luigi Pirandello, na sala de número dois do complexo.
Era uma sala pequena, cujo acesso à plateia se dava por uma escada íngreme que terminava numa abertura no centro do palco. Acomodado o público, fechava-se a quartelada e os atores representavam sobre a única saída possível.
Soou o terceiro sinal, as luzes se apagaram, fez-se silêncio no recinto e um refletor iluminou a atriz. Arfante, a moça atacou o texto tomada por uma teatralidade canastrona, empenho esforçado dos que confundem tensão com emoção e ainda não aprenderam a relaxar em cena.
A noite vai ser longa, pensei. Felipe, ao meu lado, também assistia pasmo às contorções da Sarah Bernhardt do teatro experimental de Copacabana sobre o famigerado alçapão de escape, calculando, em vão, maneira outra de fugir dali.
“Será que já ligaram para as nossas famílias pedindo o resgate?”, sussurrou ele. Rimos e aguentamos firmes a sessão.
A lembrança tem me voltado à cabeça toda vez que leio ou assisto ao noticiário. Como naquele dia, tenho a impressão de estar presa a uma comédia macabra de equívocos, cujos protagonistas bufões bloqueiam toda e qualquer saída viável.
Não desejo fustigar o leitor com a retrospectiva da visita do Voldemort do Planalto aos States, evito destacar as mentiras do discurso da ONU, o dedo do meio do médico e o monstro quarentenado, a arminha na mão do chanceler aloprado e a contaminação geral da comitiva. Já são 1.003 dias dessa desgraça. É demais, mamãe, é demais!
Apelo para um paralelo indigesto entre a nossa miséria democrática e a decadência do teatro que serviu de cativeiro para o sequestro artístico sofrido por mim e meu amigo nos idos de 1980. Inaugurado em 1979, junto com a anistia, o teatro Villa-Lobos nasceu para a glória e morreu como o Museu Nacional.
Localizado na boca do Túnel Novo, sobre uma subestação de esgoto da avenida Princesa Isabel, o Villa-Lobos ostentava arcos colossais de concreto estilo Brasília na entrada e um foyer obsoleto e superdimensionado, com escadarias de mármore ladeadas por corrimões dourados que levavam à plateia da grande sala, equipada com poltronas de veludo vermelho.
Tudo exalava luxo e riqueza nos 6.000 metros quadrados de área construída para abrigar o palco principal, uma sala de teatro alternativo e um edifício de quatro andares com camarins, três salas de ensaio, cantina, duas cozinhas, consultório médico e farmácia. Os motivos que levaram o Villa-Lobos a se transformar numa caveira de burro e, mais tarde, num foco de dengue, mesclam a velha receita de negligência, falência e má administração pública.
Em setembro de 2011, a explosão de um transformador no último andar do prédio de quatro pavimentos, suspeita-se, provocou o incêndio, do qual resistiriam de pé somente as arcadas frontais do edifício. Mas entre a inauguração e as chamas, muitas foram as tentativas de revitalização do espaço.
Na década de 1990, um conhecido diretor, ator e dramaturgo assumiu a administração do Titanic. Assustado com o consumo elevadíssimo de luz e água de uma casa de espetáculo inoperante, ele pediu a auditoria nas contas e a checagem da fiação e da tubulação.
O empenho levou-o à descoberta de que os desafios iam muito além da gestão cultural, se confundindo com a própria tragédia social carioca. Localizada no alto do morro do Leme, a comunidade vizinha ao teatro aproveitara o abandono do edifício para puxar gatos de energia e água que, agora, abasteciam os casebres de centenas de moradores ignorados pelo Estado.
A saúde financeira do teatro levaria ao confronto com a população carente, um dilema que levou o novo gestor a optar pelo afastamento voluntário. Outros diretores viriam e fracassariam na tentativa de solucionar esse e outros tantos problemas, até o Villa-Lobos virar cinzas. Da antiga pretensão burguesa, só restou o frontispício. Da fachada para dentro, moradores de rua dividem as ruínas com os ratos, os mosquitos e o matagal.
Nascido junto com a lenta retomada democrática, cujo marco é a anistia, o teatro Villa-Lobos espelha o sonho republicano de brio e grandeza, seguido do fracasso e da desilusão. Minada, a democracia mantém a fachada modernista intacta, enquanto aguarda pelo incêndio, resistindo à base de gatos.
Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário