terça-feira, 14 de setembro de 2021

Duas doses da vacina me fizeram cair em tentação e aglomerar sem máscara


No confessionário dividido por uma parede de acrílico, a penitente sussurra seus pecados pandêmicos, abafados por uma N95: Peço perdão, pois aglomerei. Como é estranho ser sujeito desse verbo que até 2020 não precisava conjugar, porque ninguém chamava as aglomerações de aglomerações, e sim de muvucas, fervos etc. Fora o paradoxo de se aglomerar na primeira pessoa do singular, já que é impossível aglomerar sozinho.

Pois bem, foram quase dois anos ricocheteando nas paredes do apartamento, debruçada em janelas virtuais, testemunhando o negacionismo que lotava bares e UTIs. Aos sábados, era possível ouvir aquele monstro com mil vozes e nenhum coração, ecoando variantes inéditas nas esquinas do bairro.

Até que, certa noite, duas doses de Coronavac depois, um ou oito drinques a mais, fui engolida pelo monstro e mastigada pela culpa usando a máscara no queixo. O céu aberto me confortava, mesmo prestes a desabar. Uma euforia adolescente, a pulsão de morte e a pulsão de vida dançando de rostinho colado. E uma ressaca que só um PCR daria jeito.

Peço perdão, pois me alienei. Perdi a conta dos mortos, das variantes, das taxas de eficácia de cada vacina, dos crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente, dos valores repassados pela rachadinha, dos hectares desmatados na Amazônia, das taxas de inflação, da capacidade dos reservatórios das hidrelétricas.

Nunca pensei que me alienaria justo no momento em que a desinformação se provou tão letal, mas a realidade estava me enlouquecendo.

Agora, de que adianta um mecanismo de defesa individual que nos torna vulneráveis enquanto coletivo? Eu não sei responder a essa e a outras perguntas, pois estou mal informada, me esgueirando entre pilhas de jornais e newsletters não lidos, escondida na trincheira em meio à guerra da informação, acovardada pelas bombas que não param de explodir.

Peço perdão, pois fingi que estava tudo bem quando tudo ia mal. Peço perdão, pois abracei pessoas que amo. Peço perdão, pois não abri mão da presença da diarista quando o lockdown era imprescindível. Peço perdão, pois viajei para o litoral no Réveillon, surfando a segunda onda. Peço perdão, pois cobrei demais dos outros. Peço perdão, pois não cobrei o suficiente de quem deveria. Peço perdão, pois me cobrei demais. Peço perdão, pois me cobrei de menos.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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