quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Brasil de Bolsonaro é comédia macabra cheia de equívocos e sem saída


Décadas atrás, muito antes do incêndio de 2011 lamber o que restava do teatro Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, num tempo em que ainda existiam as artes cênicas no Brasil, eu e Felipe Pinheiro, meu amigo já morto, fomos assistir a uma montagem de Os Gigantes da Montanha”, de Luigi Pirandello, na sala de número dois do complexo.

Era uma sala pequena, cujo acesso à plateia se dava por uma escada íngreme que terminava numa abertura no centro do palco. Acomodado o público, fechava-se a quartelada e os atores representavam sobre a única saída possível.

Soou o terceiro sinal, as luzes se apagaram, fez-se silêncio no recinto e um refletor iluminou a atriz. Arfante, a moça atacou o texto tomada por uma teatralidade canastrona, empenho esforçado dos que confundem tensão com emoção e ainda não aprenderam a relaxar em cena.

A noite vai ser longa, pensei. Felipe, ao meu lado, também assistia pasmo às contorções da Sarah Bernhardt do teatro experimental de Copacabana sobre o famigerado alçapão de escape, calculando, em vão, maneira outra de fugir dali.

“Será que já ligaram para as nossas famílias pedindo o resgate?”, sussurrou ele. Rimos e aguentamos firmes a sessão.

A lembrança tem me voltado à cabeça toda vez que leio ou assisto ao noticiário. Como naquele dia, tenho a impressão de estar presa a uma comédia macabra de equívocos, cujos protagonistas bufões bloqueiam toda e qualquer saída viável.

Não desejo fustigar o leitor com a retrospectiva da visita do Voldemort do Planalto aos States, evito destacar as mentiras do discurso da ONU, o dedo do meio do médico e o monstro quarentenado, a arminha na mão do chanceler aloprado e a contaminação geral da comitiva. Já são 1.003 dias dessa desgraça. É demais, mamãe, é demais!

Apelo para um paralelo indigesto entre a nossa miséria democrática e a decadência do teatro que serviu de cativeiro para o sequestro artístico sofrido por mim e meu amigo nos idos de 1980. Inaugurado em 1979, junto com a anistia, o teatro Villa-Lobos nasceu para a glória e morreu como o Museu Nacional.

Localizado na boca do Túnel Novo, sobre uma subestação de esgoto da avenida Princesa Isabel, o Villa-Lobos ostentava arcos colossais de concreto estilo Brasília na entrada e um foyer obsoleto e superdimensionado, com escadarias de mármore ladeadas por corrimões dourados que levavam à plateia da grande sala, equipada com poltronas de veludo vermelho.

Tudo exalava luxo e riqueza nos 6.000 metros quadrados de área construída para abrigar o palco principal, uma sala de teatro alternativo e um edifício de quatro andares com camarins, três salas de ensaio, cantina, duas cozinhas, consultório médico e farmácia. Os motivos que levaram o Villa-Lobos a se transformar numa caveira de burro e, mais tarde, num foco de dengue, mesclam a velha receita de negligência, falência e má administração pública.

Em setembro de 2011, a explosão de um transformador no último andar do prédio de quatro pavimentos, suspeita-se, provocou o incêndio, do qual resistiriam de pé somente as arcadas frontais do edifício. Mas entre a inauguração e as chamas, muitas foram as tentativas de revitalização do espaço.

Na década de 1990, um conhecido diretor, ator e dramaturgo assumiu a administração do Titanic. Assustado com o consumo elevadíssimo de luz e água de uma casa de espetáculo inoperante, ele pediu a auditoria nas contas e a checagem da fiação e da tubulação.

O empenho levou-o à descoberta de que os desafios iam muito além da gestão cultural, se confundindo com a própria tragédia social carioca. Localizada no alto do morro do Leme, a comunidade vizinha ao teatro aproveitara o abandono do edifício para puxar gatos de energia e água que, agora, abasteciam os casebres de centenas de moradores ignorados pelo Estado.

A saúde financeira do teatro levaria ao confronto com a população carente, um dilema que levou o novo gestor a optar pelo afastamento voluntário. Outros diretores viriam e fracassariam na tentativa de solucionar esse e outros tantos problemas, até o Villa-Lobos virar cinzas. Da antiga pretensão burguesa, só restou o frontispício. Da fachada para dentro, moradores de rua dividem as ruínas com os ratos, os mosquitos e o matagal.

Nascido junto com a lenta retomada democrática, cujo marco é a anistia, o teatro Villa-Lobos espelha o sonho republicano de brio e grandeza, seguido do fracasso e da desilusão. Minada, a democracia mantém a fachada modernista intacta, enquanto aguarda pelo incêndio, resistindo à base de gatos.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

A 'bananalidade' do mal


A expressão “bananalidade do mal” (atenção para a casca de banana) andou circulando por aí nos últimos tempos, mas até onde pude apurar fui o primeiro a usá-la. Fiz isso num tuíte de 4 de outubro de 2018, quando Bolsonaro ainda era só um candidato —o mal de sua eleição já se mostrava inescapável, mas não estava consumado.

“O Brasil bolsonarista atualizou Hannah Arendt: criou a bananalidade do mal”, escrevi. Não cito isso para reivindicar a autoria de um trocadilho meio besta —quem sabe até inadequado, com seu jeito cômico, para dar conta do período de trevas em que o país mergulharia.

O que me interessa é demonstrar que já estavam claras na campanha eleitoral –“como a fruta dentro da casca”, na fórmula machadiana— as inclinações moralmente deformadas e friamente assassinas de uma seita política chamada bolsonarismo.

estarrecedor escândalo da Prevent Senior, que a CPI está desvendando, é apenas o amadurecimento dessa bananosa. Na exaltação estridente da tortura e do extermínio de adversários, entre outros aspectos, desde o início estava codificado em linguagem compreensível a qualquer criança o chamado à desumanidade.

O trocadilho pode ser besta, mas tem fruta dentro dessa casca. A filósofa alemã Hannah Arendt lançou a noção de “banalidade do mal” em seu livro “Eichmann em Jerusalém” (Companhia das Letras). O tema desse ensaio-reportagem é o julgamento a que Israel submeteu em 1961 um ex-funcionário nazista sequestrado por seu serviço secreto em Buenos Aires.

A banalidade do mal —que nossa república bananeira transforma em bananalidade porque, né...— virou no mercado de ideias uma expressão de sucesso, quase pop. Merecidamente, aliás. É fundamental para entender como um Estado criminoso contamina a sociedade em que se instala.

Adolf Eichmann era um Johann Niemand (joão-ninguém em alemão), sujeito comum e sem transcendência, um burocrata provavelmente incapaz de matar um passarinho —que dirá um ser humano— com as próprias mãos.

No entanto, como responsável pela logística de transporte dos campos de concentração e sob as ordens de Himmler, contribuiu diretamente para a morte de milhões de pessoas. Sua defesa alegou que ele só cumpria ordens. Foi condenado à morte mesmo assim.

A tarefa de passar o Brasil a limpo, que mal começou, terá de levar em conta em algum momento o que Arendt chama de “inadequação do sistema legal dominante e dos conceitos jurídicos em uso para lidar com os fatos de massacres administrativos organizados pelo aparelho do Estado”.

As imperfeições desse paralelo são bem evidentes. Por um lado, os brasileiros que morreram de bolsonarismo se contarão no máximo às centenas de milhares —não aos milhões.

Por outro lado, Eichmann tinha muito mais motivos —ligados à segurança da carreira e até da vida— para abraçar o mal. Já foi demonstrado em diversas ocasiões que o Terceiro Reich inspira a extrema direita brasileira, mas seus arremedos verde-amarelos são toscos e farsescos.

A bananalidade do mal é uma rede que envolve militares reaças, jornalistas de aluguel, médicos desprovidos de senso ético, líderes religiosos argentários, artistas fracassados, agentes públicos venais, empresários inescrupulosos e ressentidos em geral.

Trata-se de tipos bem manjados —quem sabe eternos— da comédia humana. Estão todos em Balzac, sem tirar nem pôr. Cada um por si, a imensa maioria nunca teria coragem de matar ninguém.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Um casamento começa a terminar na primeira vez que surge a palavra esposo


Falta uma palavra na língua portuguesa. Quando um homem se casa com uma mulher, ele vira seu marido. Ela, no entanto, se torna sua… Mulher. Coisa que ela sempre foi. Mas agora é “sua” mulher. Eu vos declaro marido e… Falta uma palavra nova ali. Poxa, Guimarães Rosa. Inventou tanta palavra. Podia ter inventado alguma pra sua senhora, alguma que soasse melhor que “sua senhora”. Custava nada. Nonada.

Existe a palavra esposa, mas soa terrível: me recuso a ter uma esposa, até porque isso faria de mim um esposo. Um casamento começa a terminar quando as pessoas começam a se chamar de esposo. Daí começam as brigas pela toalha molhada em cima da cama, a tampa da privada e todas aquelas coisas que só mesmo dois esposos são capazes de ter.

Você começa chamando de esposa e quando vê tá chamando de patroa e, quando o telefone toca na frente dos amigos, você chama de “Dona Encrenca” —e só de pensar que posso me tornar essa pessoa, fiquei empolado, a glote fechou.

Chamar de companheira, no entanto, soa hippie demais, militante demais, esquerdomacho demais. “Deixa eu te apresentar minha companheira…” Não dá. Imediatamente brotam flores imaginárias na minha barba, e minha bermuda se converte em sarongue.

A palavra cônjuge, no entanto, está fora de cogitação. “Deixa eu te apresentar minha cônjuge.” Pobre senhora. Foi reduzida a uma categoria jurídica. A cônjuge está pra mulher como o pênis está pro pinto: é sua versão técnica. Erradica-se qualquer chance de erotismo. Não que a palavra marido seja sexy, como também pinto não é, mas cônjuge está no topo da lista das palavras mais feias da língua, ao lado de fronha e de íngua. Além disso, é “inrimável” e impronunciável, como bem provou o Moro, cuja única contribuição pro país foi a criação da palavra “conge”, muito mais simpática que a original. Mas não dá pra usar: a palavra vem junto da voz de marreco, da boca de CD player. Moro ressuscitou o conge, mas só mesmo pra terminar de matar de vez.

A palavra consorte parece que a sujeita ganhou na loteria, quando tudo o que ela ganhou foi um companheiro de fronha, examinador de ínguas.

Talvez o segredo seja chamar pelo nome, evitando evocar o estado civil. Na pandemia, tem dado certo. Em algum momento, imagino que a gente volte a conhecer pessoas novas. Nesse momento, alguém talvez pergunte: “Ela é sua... ?”. Até lá, torço pra que tenham inventado uma palavra nova. Marida? Tudo menos isso.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Brasil das memoráveis crônicas de Joel Silveira é o mesmo Brasil do Twitter


Poucos dias antes do propalado 7 de Setembro, comecei a reler, ao mesmo tempo e ao léu, três livros de Joel Silveira (1918-2007): “Na Fogueira”, “A Feijoada que Derrubou o Governo” e “A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista”. O primeiro, um livro de memórias, e os dois outros, coletâneas de textos publicados originalmente na imprensa.

Como está atual, up-to-date, o velho Joel, o repórter-víbora, segundo Assis Chateaubriand. O Brasil de suas memoráveis reportagens e crônicas é praticamente o mesmo Brasil do Twitter. Na essência, na alma, porque o elenco piorou um bocado.

Por exemplo: a cena do jantar dos homens brancos e ricos que riem à toa, na casa do empresário Naji Nahas, poderia muito bem se encaixar na reportagem “Grã-finos em São Paulo”, de 1943.

Enquanto os presos políticos abarrotavam os porões do Estado Novo e a censura comia solta, “o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi” bebiam uísque e jogavam cartas no salão do Automóvel Club, “um lugar triste como um cemitério”. A guerra que devastava a Europa, aliás, estava sendo ótima para os negócios. Nunca as fábricas haviam trabalhado tanto.

“Dia e noite os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada”.

No mordaz perfil da elite brasileira, o teso Joel, então com 25 anos, afundara os sapatos gastos em tapetes fofos, comera com talheres de prata, ouvira barbaridades: “Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé”.

Ele não descreve, mas posso imaginar os vasos chineses e o papel de parede verde-musgo adornando os ambientes neoclássicos. Segundo Joel, o grã-finismo paulista “não perdoa a Semana de Arte Moderna”.

“São criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores heroicos e sem muitos escrúpulos, que rasgaram as matas de São Paulo. Morreram todos, estão enterrados na história, mas deixaram um presente régio: um cartão de visitas.”

Hitchcock da imprensa

Ao longo da profícua carreira, Joel Silveira escreveu pelos cotovelos. São mais de 20 livros, que reúnem reportagens, perfis, crônicas, entrevistas e memórias. Sergipano de Lagarto, desembarcara no Rio de Janeiro no começo de 1937, aos 19 anos, sonhando com as rodas literárias da capital.

Primeiro, trabalhou na Dom Casmurro, revista de Brício de Abreu e Álvaro Moreyra. Em seguida, integrou o time de ouro de Diretrizes, revista fundada por Samuel Wainer, em 1938, que abrigou nomes como Rubem Braga, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz. Adalgiza Nery, Edmar Morel, Moacir Werneck de Castro, Otávio Malta, Carlos Lacerda, Augusto Rodrigues, Nassara.

Fora em Diretrizes que Joel Silveira virou repórter, convencido por Samuel Wainer. Queria mesmo era escrever contos, romances. Dono de um talento raro, acabou por juntar as duas coisas. Antes mesmo de Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer entrarem na moda com o “new journalism”, ele já dava seus pulos no jornalismo literário.

Usando recursos da ficção, abusando da metalinguagem, dos flashbacks e, principalmente, colocando-se na cena, como um Hitchcock da imprensa, legou-nos um interessante mosaico do século 20.

Joel Silveira estava lá, em todos os momentos importantes do país —e do mundo. E escreveu sobre todos eles. Em “O Diabo é Testemunha: Não Foi um Passeio” conta a vida no front da Segunda Guerra.

Em “A Feijoada que Derrubou o Governo” narra, a partir de um almoço na casa de um ministro de Jango, os bastidores de 1964. Em “Maio de 1952: O Integralismo Faz Tricô” discorre sobre a melancólica aposentadoria do fascismo. No texto intitulado “A Renúncia —ou a Verdade de Cada um. Inclusive a dele, Jânio”, bate um papo com o ex-presidente sobre o mistério de 1961.

Entre os muitos perfis da sua lavra —registrou encontros saborosos com todo mundo que importava, da política às artes— talvez o mais sensacional seja o de Antônio Carlos, o cacique do Partido Republicano Mineiro (“Os Andrada nunca se preocupam com dinheiro”), uma síntese dos velhos políticos e da velha política brasileira.

“Durante mais de quarenta anos de vida política, é possível que o presidente Antônio Carlos nunca tenha dito um não.”

A propósito: de Antônio Carlos, o autor da frase “façamos a revolução antes que o povo a faça”, a Michel Temer, os conservadores, que Joel costumava chamar de “liberalões que no fundo são reacionários”, perderam, e muito, em charme.

Na fogueira

O Sete de Setembro passou, com as ruas infestadas pelo “verde-amarelismo”. Nas memórias de Joel Silveira, volta e meia, eles saltam das páginas, os patriotas, uma gente que se apodera da bandeira do Brasil, do Hino Nacional, da moral, debatendo-se contra um comunismo irreal.

Diga-se de passagem, o roteiro vem se repetindo história afora: os golpistas da vez levantam a bandeira da moralidade pública, a classe média compra e a democracia vai para as cordas. Como bem dizia Paulo Francis, o brasileiro é, sobretudo, o sujeito que gosta de chamar o outro de ladrão.

Quantos golpes testemunhou o Joel? No duro, três, se considerarmos a Revolução de 30 um golpe, o que, de fato, foi. Portanto, 1930, 1937 e 1964. Em 1945, ele vira Getúlio Vargas cair. Em 1950, voltar, nos braços do povo. Em 1954, o tiro no peito, que, no fim das contas, serviria para puxar a toalha do banquete dos golpistas, que acabariam por triunfar em 1964.

Um ano depois, em 1955, o contragolpe do marechal Lott, garantindo a posse da vitoriosa chapa JK-Jango. Em 1961, Leonel Brizola levantara o país contra a tentativa de quartelada que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros. Enfim... a lista é praticamente infinita, se contarmos as investidas mal sucedidas.

Se tem uma coisa que o livro de memórias do Joel Silveira ensina é que os golpes de Estado sempre vêm acompanhados de surpresa. Mesmo debaixo da tempestade de indícios, ninguém acredita.

Lembrai-vos de 37, dizia-se à época. Desde 1934, com a promulgação da nova Carta, a mais breve da nossa história, Vargas vinha governando como presidente constitucional, após três anos do governo provisório instaurado pela Revolução de 30. Porém, a partir da Intentona Comunista, de 1935, com a desculpa de combate aos bolchevistas, já passara a abocanhar nacos da lei.

No fim da tarde de 10 de novembro daquele 1937, com os amigos Daniel Bastos e Wilson Lousada, Joel partira para um convescote no elegante apartamento de Brício de Abreu, no Catete. O programa da noite era ouvir o pronunciamento do presidente. O dia havia raiado com tropas na rua e a notícia da morte precoce da Constituição de 34. No lugar, a Constituição de 1937, logo apelidada de “Polaca”. Escrita por um homem só, Francisco Campos, o Chico Ciência, a Carta era inspirada na fascista Constituição de Abril, da Polônia.

“Pausado, paternal, Vargas explicava: havíamos sido salvos do caos iminente, do desmoronamento do estado, da anarquia, da hidra comunista. Enfim, da iminente catástrofe que, não fosse detida, nos levaria sem dúvida à perdição eterna. Mas que todos nós, trabalhadores do Brasil, ficássemos tranquilos. Ele, Vargas, e mais a sua guarda pretoriana, passariam a velar por nós”

Inventado o autogolpe e instaurado o Estado Novo, o que mais podia se fazer? Beber a saideira no “49”. Enquanto iam jogando conversa fora, na caminhada entre o Catete e a Lapa, Joel só pensava em Brício de Abreu: “Não nos serviu nem uma bolacha”. De estômago vazio, o conhaque caíra-lhe como uma bomba. Mal conseguia andar em linha reta.

"Não resta dúvida: já estamos em plena ditadura".

"Não me diga!"

"Vai ser uma merda total"

"Com a porcaria do Congresso abrindo as pernas para tudo, o que se poderia esperar?"

"E agora?"

"Sei lá."


Texto de Karla Monteiro, na Folha de São Paulo

Uma heroína apaixonada é tão cafona quanto uma sandália gladiadora


Acabou-se o que era doce: as ingênuas mocinhas da ficção estão com os dias contados. A heroína que só consagra sua jornada quando chega ao altar e diz sim —a clássica deixa para a subida dos créditos— já é considerada tão cafona quanto uma sandália gladiadora.

É chegada a era da protagonista feminina complexa. A mulher contemporânea, independente, empoderada, com mais camadas do que um repolho transgênico. Um prato cheio para uma criadora de conteúdo como esta que vos escreve. Mas construir uma personagem desconstruída não é simples.

A personagem feminina complexa não pode ter inimigas. Ela jamais competiria com outra mana, pois sabe que a rivalidade feminina nada mais é do que um mecanismo para controlar as mulheres, pondo uma contra a outra. Confrontar nossa personagem com uma antagonista inescrupulosa reforçaria o estereótipo de que mulheres são falsas e invejosas.

A personagem feminina complexa não pode amar. A protagonista que se põe em segundo plano por amor, como as Helenas de Manoel Carlos, hoje em dia só arranca suspiros de constrangimento. A não ser que ela seja lésbica. Nesse caso, ela tem todo o direito de amar, ser amada e ser aceita por isso.

A personagem feminina complexa não pode ter defeitos. Se ela for desajeitada, podemos derrapar no clichê de que mulheres não seriam tão habilidosas, aptas somente ao trabalho doméstico. Se ela for insegura, lá vamos nós cair na armadilha do sexo frágil, da mulher que não entrou em contato com seu sagrado feminino e não tem consciência da própria força. Se ela for uma baita de uma escrota, estaremos dando voz ao discurso misógino de que mulheres seriam umas baitas de umas escrotas.

A personagem feminina complexa não pode errar. Uma heroína que toma péssimas decisões pode ser considerada um desserviço em uma sociedade que ainda considera as mulheres menos inteligentes do que os homens. Isso passaria a falsa impressão de que as mulheres se deixam levar pela emoção em vez da razão e ninguém quer assistir a uma protagonista histérica em pleno 2021.

personagem feminina complexa não pode ser perfeita. A perfeição é impossível até na ficção. O mito de perfeição feminina só existe para oprimir mulheres com ideais inatingíveis.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sábado, 25 de setembro de 2021

Só os filósofos de língua portuguesa podem pensar em coisíssima nenhuma


Dizem que Tales de Mileto estava um dia tão embrenhado a olhar para o céu, observando as estrelas, que acabou por cair num poço. Platão acrescenta que uma bela e espirituosa criada da Trácia riu dele e o fez notar que a sua ambição de conhecer as coisas do céu o impediu de ver as coisas que tinha mesmo debaixo do nariz.

Não sei em que medida é que o fato de a moça ser bela, espirituosa e criada oriunda da Trácia acrescenta peso à humilhação de Tales, mas Platão achou importante que tivéssemos essas informações. Talvez seja mais humilhante fazer figura de bobo à frente de pessoas belas. Pode ser isso.

Costuma dizer-se que, quando o sábio aponta para a Lua, o louco olha para o dedo. O que me interessa é que o autor dessa observação olhou para todo o lado: para o sábio, para a Lua, para o louco e para o dedo. O que quer dizer que olhou através dos seus olhos (porque viu o sábio e o louco), e olhou através dos olhos do sábio e através dos olhos do louco (porque também viu a Lua, como o primeiro, e também viu o dedo, como o segundo). Na história de Platão, Tales só viu as estrelas. A criada viu Tales, as estrelas e o poço. Ela era uma filósofa melhor.

Heidegger recupera essa história no seu livro "O que É Uma Coisa?", cujo título dá vontade de rir, pelo menos até a gente começar a ler, altura em que toda a alegria nos abandona.

O livro é uma investigação sobre a substância das coisas, a nossa relação com elas, e o modo como a nossa relação com elas pode influenciar a sua substância. Ou seja, é chato (eu sou um leitor de filosofia muito sofisticado).

Mas todas aquelas reflexões sobre as coisas fizeram-me lembrar aquela expressão que os falantes de português usam: coisíssima nenhuma. E afastei-me um pouco do pensamento de Heidegger para me maravilhar com a improbabilidade dessa expressão.

Como assim, coisíssima? Coisa é um substantivo. Quem teve a ideia de o superlativar? E então concluí que qualquer filósofo pode dedicar-se a pensar as coisas. Mas só os filósofos de língua portuguesa podem ser bem-sucedidos na difícil, quase impossível tarefa de pensar em coisíssima nenhuma.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo

Cancelamentos possíveis


J. foi o primeiro antropólogo a traduzir os fundamentais cânticos fúnebres da língua Baruna. Num debate entre J. e o pajé Wa’am’biipi, parte da comemoração pela demarcação das terras Baruna —vitória para a qual os trabalhos e o ativismo do antropólogo não podem ser desconsiderados—, alguém gritou da plateia: “usurpador!”. Tratava-se de M., membro da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste. Segundo M., receber os louros pela tradução de uma obra indígena e comemorar a demarcação ao lado do pajé fazia de J. a versão intelectual dos Pizarros, dos Cortéses, dos Pedro Álvares Cabrais, um “neoextrativista dos bens culturais ameríndios”.

Em alguns meses, a campanha “antitradução”, corrente segundo a qual apenas um membro de sua própria etnia, aprendendo uma língua alheia, poderia verter para ela seu idioma, levou J. de herói a facínora. J. foi afastado da faculdade. Seus artigos encomendados por publicações acadêmicas foram cancelados.

Com o caso J., M. acabou ficando bombadinho nas redes e foi filmado numa praça batendo boca com a namorada. Surgiu então uma campanha barulhenta exigindo a expulsão de M. da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste, pois tratava-se de um “machistx em pelx dx cordeirx”. “Trata as mulheres com a mesma opressão colonialista que finge combater! Lixo humano!”.

M. e a namorada, com quem tinha feito as pazes na mesma tarde, na mesma praça, acharam que seria uma boa estratégia divulgar a foto dos dois num sex-shop, segurando uma cinta peniana, com a qual, revelariam, ela costumava penetrá-lo. Provariam, assim, o quanto M. estava, “através da desdomesticação heteronormativa colo-colonial”, engajado “na subversão dos afetos patriarcais”.

O brinquedo erótico, porém, tinha tiras de couro e suscitou a ira de ativistas veganos, que lançaram nas redes montagens de imagens do casal sobrepostas a de bois ensanguentados em matadouros, trespassados por enormes cintas penianas. Uma semana depois, toda a bancada ativista de São Joaquim D´oeste renunciou ao mandato —dando mais espaço, aliás, para a vereança ruralista, dona dos abatedouros.

Nas redes, os ruralistas chamaram M. de homossexual. M. disse que, se fosse, seria feliz, pois na Grécia clássica e em Roma, por exemplo, relações sexuais entre homens não eram nenhuma vergonha, eram motivo de orgulho.

M. certamente não estava à par das últimas polêmicas sobre o período clássico. Como era comum, àquela época, homens feitos terem relações sexuais com mancebos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e companhia não passavam de pedófilos, abusando de menores “no gozo perverso do privilégio gerontocrático”. Gregos e latinos foram cancelados.

Há quem diga que as únicas obras dignas de mérito em toda a história do pensamento são os livros da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Uma tendência mais recente, contudo, contesta Chimamanda ferozmente, por ter se mudado para os Estados Unidos e escrever em inglês, não em uma das 510 línguas atualmente faladas no país africano. “Feminista e antirracista sendo filha de professor universitário e ganhando em dólar, é fácil”, escreveu um membro do movimento #fuckfakeafrican —em seu iPhone, nos Jardins. “Mas e as mulheres que ficaram na Nigéria? As que não têm o auxílio imperialista de uma Chimamanda? O palanque etnocêntrico de um J.? O privilégio machista e especista de um M.? Todo o lobby branco dos gregos e latinos? Quem as lê? Quem as enxerga, sequer?”.

A. escrevia na Folha de S.Paulo, até que.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Vem aí a nova aventura de Bolsonaro, seu trapalhão favorito agora em NY


Depois dos sucessos de “S.O.S., Tem um Louco Solto em Brasília”, “Um Presidente e Três Bebês”, “Dia da Mamata” e “Corra que a Milícia Vem Aí”, o trapalhão Jair Bolsonaro apronta para valer em mais uma aventura que é a maior confusão.

Ele era um fracassado capitão do Exército que tentava explodir quartéis com bombas, até que resolveu se candidatar a presidente. O que ninguém imaginava é que esse maluco ganharia as eleições, levando toda a sua família para viver a maior boiada.

Com uma turma do barulho e para lá de incompetente, ele passou a atear fogo nas florestas e levar o país inteiro para um atoleiro atrás do outro.

Nessa nova aventura, esse presidente abobalhado desembarca em Nova York para levar todo mundo à loucura. Prepare-se para muita encrenca. Você vai rir sem parar, mas de nervoso.

Em plena pandemia, esse líder malucão vai parar na ONU sem tomar vacina, fazendo todo mundo passar apuros. Vai ter álcool em gel para todo o lado.

Em um encontro explosivo, o presidente se reúne com o tresloucado primeiro-ministro do Reino Unido. Ao lado de Bolsonaro, até o britânico é sensato.

Junto com sua trupe, esse presidente nada imunizado come pizza na calçada e faz todo mundo passar um constrangimento atrás do outro. Até pizza fica ruim com essa galera que só pensa em afundar o país.

Você não perde por esperar esse presidente trambiqueiro discursando para a ONU e virando chacota mundial. É uma mentira atrás da outra.

O que o presidente não imaginava é que seus inimigos estão até em Nova York e ele encara protestos por todos os lados. Por sorte, tem como capacho um ministro da Saúde descontrolado, que mostra o dedo do meio para a galera. Mas quem toma é o brasileiro.

Não perca na "Sessão da Tarde" essa comédia que vai fazer toda a família rir. Mas só a do presidente. Já a sua vai chorar.

Depois dessa aventura, vem aí “Um Golpe Muito Louco”, quando esse presidente para lá de insano se junta a idosos fascistas para tentar tomar o poder. Logo após o "Vídeo Show".


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Derrotar Bolsonaro no ano que vem é possível, mas o bolsonarismo, nem tanto


Dá para entender o cansaço das pessoas com relação ao impeachment de Bolsonaro. Tudo empaca no presidente da Câmara dos Deputados, e as pressões sobre ele não são das mais consideráveis.

A sensação vem acompanhada de grande otimismo com a eleição de Lula em 2022. A terceira via tem se mostrado puramente imaginária até aqui, e as pesquisas apontam para uma lavada a favor do petista.

Contra Bolsonaro, qualquer um é excelente candidato, na minha opinião. Lula, Doria, Moro, Luciano Huck, quem você quiser. Mas é aí que as coisas se complicam. Misturam-se dois objetivos: tirar Bolsonaro e fazer um novo governo. O que serve para um caso não serve necessariamente para outro.

Imagino uma grande convergência em torno de Lula para ganhar as eleições. Quem seria o seu vice? Alguém do agronegócio ou do varejo? Renan, quem sabe? Qual seria a sua base no Congresso? Uma aliança ainda mais ampla do que a construída das outras vezes?

Toda a habilidade política do ex-presidente para contentar PMDB, PTB e o que seja me parece insuficiente, a esta altura, para conduzir um governo nos próximos anos. Os anos Lula se beneficiaram de uma boa situação econômica. Os avanços sociais cobriram, por um bom tempo, a corrupção e a ausência de reformas essenciais.

Achar possível uma volta àquela situação de conforto seria ignorar o que aconteceu a partir de 2013 e, mais ainda, as próprias razões do bolsonarismo. Derrotar Bolsonaro é possível com largas alianças à direita. Derrotar o bolsonarismo é uma tarefa bem mais difícil e exigiria um bocado de radicalidade. Dou alguns exemplos.

Não me parece possível nenhum avanço no plano dos direitos da mulher, do respeito à laicidade do Estado, do estímulo ao pensamento científico e da melhoria intelectual da população se um futuro governo mantiver as televisões dominadas por igrejas evangélicas.

Por que uma TV, concessão do Estado, pode alugar seu espaço a curandeiros histéricos e enganadores? Ai de quem tocar nesse assunto! “Atentado à liberdade religiosa! Preconceito!” Uma coisa é atentar contra a liberdade religiosa. Outra é facilitar a vida de trambiqueiros.

Outro exemplo. Como permitir que as Forças Armadas e as polícias militares vivam em completo desacordo com o legado da democratização, e com princípios de respeito aos direitos humanos estabelecidos há séculos?

Uma intervenção ideológica radical seria necessária —mas seu sucesso dependeria, também, de uma política de segurança pública de audácia jamais vista… Pois a convicção geral de que “bandido bom é bandido morto” nasce do real desespero de quem vive em áreas de risco.

A mudança no sistema eleitoral seria uma terceira frente: sem o voto distrital misto, ninguém tem controle sobre deputados e vereadores e mal lembra em quem votou.

Por fim, o blá-blá-blá dos economistas neoliberais, com a eterna e velada ameaça de que qualquer coisa de esquerda “afugenta o investidor”, teria de ser combatido. Como acreditar no futuro econômico de um país com infraestrutura em pandarecos, com sistema educacional ridículo, desigualdades sociais gritantes e tanta insegurança pública?

Falo, portanto, de quatro pilares do bolsonarismo: neoliberais, tele-evangélicos, milicianos e fisiológicos. Nem menciono o agronegócio e as mineradoras, cujas exportações seguraram a economia nestes anos.

É muita gente para ser conciliada. São muitas cabeças sobre as quais passar a mão. Unificar uma grande maioria para derrotar Bolsonaro nas urnas pode ser possível. O preço a pagar num governo futuro pode ser altíssimo.

São, como eu disse, duas tarefas distintas. O crescimento de uma mobilização popular, culminando num impeachment, abriria caminho para opções mais claras no momento posterior das eleições.

O corpo mole com relação ao impeachment pode resultar no mesmo que se viu durante a era Lula: um jogo de equilibrismo com a direita, que se torna mais difícil agora que seu ressentimento e radicalização vieram à tona.

Meu raciocínio pode ser acusado de total irrealismo —o impeachment parece distante. Mas o irrealismo de hoje pode se revelar bem realista daqui a alguns anos. Esquecer a experiência de 2013, e dos anos que se seguiram, é também fechar os olhos para o que acontece.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Como reciclar um boy lixo sem que sua toxicidade ofereça danos ao planeta


Infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade na qual muitas mulheres desejam uma vida mais sustentável, mas têm dificuldade de descartar o boy lixo. Se você não sabe como se livrar do seu entulho, não se preocupe. Ligue agora e solicite uma coleta não seletiva.

Primeiro, nossas catadoras farão uma triagem para avaliar a toxicidade do material, já que nem todo lixo é reciclável. Se for detectada a presença de radioatividade, significa que estaremos lidando com um tchernoboy, que basicamente é a versão gremlin molhado do boy lixo e um problema que não se resolve nem se ele for enterrado.

Nesse caso, o risco de contaminação é muito grande e não queremos expor nossas funcionárias, mas podemos indicar empresas parceiras especializadas que possuem todo o aparato para isolá-los, oferecendo menores danos ao nosso planeta.

Também não trabalhamos com resíduos com signo de aquário ou gêmeos em sua composição, pois o procedimento é complexo, pouco rentável, e o resultado consegue ser mais feio do que aqueles artesanatos feitos de cápsula de Nespresso por uma criança de cinco anos.

Nesse caso, recomendamos um ritual de mudança de signo no interior de São Paulo, que inclui a ingestão de três garrafas PET cheias de ayahuasca enquanto besuntado em mel e amarrado em uma árvore na mata fechada por três dias.

Depois disso, é só entrar em contato conosco com o novo mapa astral em mãos.

Quando há a possibilidade de reaproveitamento, seu descarte será imediatamente transportado para nossa usina de reciclagem, onde dispomos da tecnologia avançada necessária para desconstruir uma matéria-prima solidificada por um sistema patriarcal. Nossa empresa sabe que mudar um boy lixo não é uma tarefa fácil. Muitas mulheres, se não a maioria, se não absolutamente todas, tentaram e falharam. Mas nós aceitamos o desafio.

O primeiro passo é separar o excesso de autoestima, um componente extremamente nocivo aos seres humanos. O procedimento consiste em várias etapas que incluem terapia, trabalhos domésticos forçados, mais terapia, hipnose, entre outros.

O objetivo é que, ao fim desse longo processo, eles possam oferecer alguma utilidade à sociedade, sendo transformados em pesos de papel, duendes de jardim, roupinhas de crochê para filtros de barro, lanternas com alarme e boias de flamingo.

Não perca mais seu tempo e seu colágeno, contrate nossos serviços agora e ganhe de brinde uma caneca personalizada, também feita de material reciclável (no caso, meu ex-marido). Sua falta de critério é o nosso negócio.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

domingo, 19 de setembro de 2021

Bolsonaro lança bravatas para encobrir cortejo de horrores que país vive


Acredito que tem sido difícil para muita gente, assim como tem sido para mim, assistir ao cortejo de horrores marchando pelo país em velocidade de cruzeiro. A questão que se anuncia é se haverá um fundo neste poço —porque nele decerto já estamos, basta apenas sensibilidade ao olhar à nossa volta.

Quase todos os dias, saio de casa para o trabalho e pelo caminho encontro muitas pessoas nos semáforos, uma pequena multidão segurando cartazes que vão desde um pedido para comprar cesta básica até a prótese para o jovem amputado.

Pelos corredores vazios e desolados do órgão onde eu trabalho, não é muito diferente. Uma auxiliar de serviços gerais me disse que tem se sentindo fraca porque já não se alimenta com proteína animal todos os dias.

O desânimo atinge também os que me cercam, colegas de trabalho sem esperança com o esvaziamento gradativo de políticas públicas importantes para o país, prevalecendo a visão distorcida do atual governo sobre a questão fundiária.

Meu irmão, que é professor, me conta sobre de inquietação com a escola pública onde trabalha. Diz que as aulas noturnas são suspensas com frequência pelo acirramento da violência do tráfico e os assaltos que não param de aumentar. Converso com outro amigo professor, que confirma que o mesmo ocorre na escola onde serve, em uma das muitas periferias de Salvador.

Depois de quase um ano e meio sem minha mãe poder encontrar com as irmãs, fomos visitá-las em um bairro da região metropolitana. No meio da conversa, confessaram estar mais aliviadas porque não houve tiroteio nas duas últimas semanas.

Eu me surpreendo com os métodos utilizados pelas gangues rivais: execuções são gravadas em vídeo e enviadas como virais para os telefones dos moradores do bairro, seguidos de longos textos que expõem as razões para as execuções e a ética que move a violência cotidiana. Decreta-se toque de recolher e ai de quem desobedeça às ordens do “Brasil Paralelo”.

Uma das tias, que vive nesse local há 20 anos, me diz que nunca viu nada parecido. E não há o que fazer a não ser sobreviver a cada dia, porque a violência tem grassado em todo lugar.

As quase 600 mil mortes na pandemia parecem ter se tornado apenas números sempre atualizados pela imprensa. As histórias das vítimas do descaso governamental reverberam apenas no seio das famílias enlutadas.

Parece não comover mais ninguém se morrem 300, 700 ou 4.000 pessoas por dia, enquanto os governos das mais diversas esferas falam em retomada da economia. Uma visão estreita de todo o processo, já que grande parte da população voltou ao mapa da fome e tem apenas sobrevivido, porque a inflação tem corroído o poder de compra e aumentado o número de vulneráveis.

O esperado fracasso do governo Bolsonaro indigna boa parte da população, mas outra significativa cerra fileiras para celebrar seu governo de morte, cujo maior feito não está na educação nem na distribuição de renda, mas na liberação de agrotóxico para as mesas e de armas para a população.

Seus seguidores vestem a camisa da seleção, agitam a bandeira brasileira em passeatas pelo fim da democracia. O “PIB” que o ajudou a se eleger indica que as instituições estão funcionando, desde que seus lucros continuem se multiplicando.

Pouco importa a corrosão do Estado democrático de Direito porque se preocupam somente com o próprio bolso e se seus patrimônios continuam a crescer. Pouco importa se amanhã não haverá Amazônia, Pantanal e terras indígenas.

Boa parte do agronegócio quer mesmo mais terra para explorar, mandando pequenos agricultores para a cidade ou para debaixo da terra. O importante é que paguem sua soja em dólar.

Da mesma maneira os garimpeiros, movidos pela cobiça, se sentem autorizados a agir para arrasar a terra alheia, mas isso só será possível com mais derramamento de sangue dos povos originários. Não irão descansar enquanto não virem tombar o último indígena.

Se tudo isso não é um golpe em marcha, não sei o que mais pode ser. Cada bravata do presidente da República tem como finalidade encobrir o cortejo de horrores que é outro, muito pior que o desfile do Sete de Setembro ou os ataques ao STF.

A crise econômica parece a atingir a classe média e, em proporção muito maior, os mais vulneráveis. Se os analistas políticos ainda esperam por tanques nas ruas para afirmar que já não vivemos mais numa democracia, diante de toda degradação moral, política e econômica que estamos vivendo, é porque perderam o bonde da história.


Texto de Itamar Vieira Junior, na Folha de São Paulo

sábado, 18 de setembro de 2021

Nunca confie em bebês, eles dominam todas as técnicas dos piores vigaristas


A minha filha mais velha fez 18 anos. Não esperava este desaforo dela. Mesmo quando, no ano passado, fez 17, não imaginei que este ano fosse fazer 18. Fui apanhado de surpresa.

E agora ela foi para a universidade, na Inglaterra. Eu fiquei em casa, a 1.408 quilômetros de distância dela, segundo o iPhone, e descobri que aquela sensação passageira de susto que a gente sente na barriga quando se aproxima de um abismo pode tornar-se permanente.

Passo à porta do seu quarto vazio: abismo. Tropeço num objeto que lhe pertence: abismo. Vejo o seu rosto numa fotografia: abismo. Racionalmente, eu sei que ela não foi para a Guerra do Vietnã, e que posso vê-la todos os dias por videochamada, mas o abismo não me deixa concentrar na razão.

Isso começou quando ela nasceu. Não se pode confiar em bebês, a verdade é essa. Não é por acaso que nunca ninguém comprou um carro usado de um bebê. Eles dominam todas as técnicas dos mais safados vigaristas.

Imaginemos que um dos nossos amigos conhece uma pessoa e, no preciso segundo em que a conhece, declara ter se apaixonado perdidamente para sempre. Todos nós diríamos ao nosso amigo que estava a ser insensato, que não conhecia a pessoa, que é impossível amar incondicionalmente uma pessoa que acabamos de conhecer.

Exceto se essa pessoa for um bebê. Nesse caso, felicitamos o amigo. Claro que sim. Claro que ele já ama uma pessoa que acaba de conhecer. Note-se que estamos a falar de uma pessoa da qual o nosso amigo nada sabe, até porque ela não apresenta quaisquer referências e —o que é bastante suspeito— não é possível encontrar qualquer vestígio seu nas redes sociais.

É óbvio que aquele bebê vai fazer nosso amigo sofrer. Mais cedo ou mais tarde, aquele bebê vai inscrever-se em literatura inglesa e estudos clássicos numa universidade estrangeira. E nosso amigo vai ficar desolado. Sabem quando, no filme "Um Sonho de Liberdade", o diretor da prisão descobre que Andy Dufresne escavou um túnel na sua cela e o escondeu atrás de um retrato de Rita Hayworth?

Percebi que a minha filha passou 18 anos a fazer o mesmo. Distraiu-me com o rosto de bebê. E por trás escavou o abismo.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo