sexta-feira, 30 de abril de 2021

Foi mal, psicanálise

 

Há um ano coloquei minha filha para dormir comigo, por causa de uma febre, e nunca mais ela voltou para o seu quarto. Tentei de todas as formas possíveis (mentira) explicar que seria muito melhor que ela dormisse sozinha, mas depois da centésima (terceira) noite frustrada, simplesmente fui vencida pelo enorme desejo que ela (eu) tem de dormir agarrada a mim (a ela).

Meu analista diz que isso está muito errado. Ele explicou um montão de coisas que eu já não lembro mais (lembro direitinho). Tinha algo sobre meu corpo, meu desejo, meu espaço para ser mulher. Tinha algo sobre o desenvolvimento da subjetividade dela, sobre a importância dos nãos, dos interditos. Ele está corretíssimo (odeio esse desgraçado, queria trocar de terapeuta).

Mas acontece que no meio da noite os pezinhos dela, por mais frio que faça em São Paulo, ficam suadinhos. Daí ela, ainda dormindo, só resmunga, “tira, quente”, e eu já estou ali pertinho e arranco suas meias (eu estudo Freud, eu faço terapia há 15 anos, talvez ela esteja me pedindo que eu me retire). O quarto então é invadido por um chulezinho de neném que, se não for o cheiro mais perfeito que já existiu na história, certamente empata com chá de erva cidreira ou canela saída do forno.

A verdade é que é uma delícia dormir com nossos filhos (durmo encolhida, levo chutes na cara, fico com dores) e o bafinho dela ao acordar me faz ter vontade de viver sem precisar estar apaixonada (ou medicada ou desafiada por um novo trabalho ou preocupada porque minha família e amigos são quase sempre mais deprimidos então não me dou esse direito). Ela sorri bem largo todas as manhãs, diz “mamãe” de uma maneira muito doce e faz um carinho no meu rosto. Está feliz por ter dormido ali, e eu pergunto o que quer de café da manhã. Ela responde baixinho, já sabendo da nossa piada interna, “primeiro um chamego”, e então eu beijo tanto essa criança que ela tem um ataque de riso e implora, adorando, “agora chega, sua doida!”.

Um grande amigo winnicottiano (quero romper com ele, cheio de pitacos) me deu uma bronca enorme. Disse que a cama da minha filha, e a falta que eu preciso lhe fazer na hora de dormir, são “espaços” em que ela poderia desenvolver sua criatividade, segurança e liberdade. A maravilhosa (não gosto dela) terapeuta infantil que entrou em nossas vidas para tentar resolver o problema da minha filha de não conseguir dormir longe de mim (e agora está tentando resolver o meu problema de não conseguir dormir longe da minha filha) explicou que parte das birras demonstradas durante o dia é de afetos atrapalhados, como se eu a estivesse estimulando demais e ela não soubesse onde colocar essa libido. Achei essa sacada perfeita (que mulher sem noção dos infernos, nunca mais voltei lá).

Gente, eu só estou segurando a mãozinha de uma menininha de três anos que diz ter medo do monstro (eu tô ligada, eu li Freud, eu sei quem é o monstro, eu sei que também tenho medo, eu sei que o pai precisa cortar essa palhaçada —mas se cortar eu capo ele), eu só estou obliterada por esse amor, aproveitando cada segundo dessa fase bebê (eu tô ligada que ela não é mais bebê, eu sei que tratá-la como bebê vai cagar tudo), será que é preciso mesmo pensar em afetos, traumas, libido, sexo, quando a cena é apenas uma mãe extasiada pelo cheirinho do pescoço suado da filha? (É preciso, eu sei, eu li, eu faço terapia há 15 anos).

Enfim, psicanalistas, vocês todos exageram demais (mentira). Está tudo bem comigo (mentira). Eu vou resolver isso hoje mesmo (mentira). Vai dar certo (mentira). Conchinha com filho é um dos motivos pelos quais a gente nasce.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

O homem certo

 

A cada entrevista ou pronunciamento fica mais evidente que Paulo Guedes é o homem certo. Suas ideias, seu comportamento, sua gestão à testa do Ministério da Economia provam a cada dia que outro homem não estaria à altura —ou à baixeza, no caso— exigida para esse cargo. Nenhum outro ministro representa de forma tão essencial as forças políticas que levaram Jair Bolsonaro à Presidência da República.

O presidente da República e o ministro da Economia são absolutamente complementares e encarnam, ainda que em corpos distintos, um só espírito. São, portanto, apenas aparentes as suas contradições.

De um lado um sujeito cuja falta de modos é lida como "autenticidade". Manda jornalistas se calarem, desdenha do sofrimento da pandemia e agride quem dele discorda. Encarna o autoritário, que muitos pedem.

Na outra ponta, o "intelectual", reconhecido pelo mercado como grande gestor e homem de sucesso. É o campeão da liberdade, que o mercado deseja. Mas nada como os momentos de crise para erodir as aparências e fazer emergir das profundezas a natureza gemelar dos dois personagens. Quando acossados, o ódio que nutrem a pobres, a trabalhadores, a pequenos empresários e a aposentados emerge de forma primordial e sem freios.

Mas que espírito é esse que no governo brasileiro habita dois corpos e que tem o poder de se apresentar simultaneamente como defesa intransigente da liberdade e ameaça à democracia? Há alguns anos as ciências sociais, nas mais variadas áreas, têm se esforçado para compreender o fenômeno que alguns denominam como neoliberalismo autoritário. Acho que nenhum outro termo pode explicar melhor o "bolsoguedismo".

O uso do termo neoliberalismo autoritário é controverso. O termo se refere às condições objetivas e subjetivas surgidas com as transformações no regime de acumulação e no modo de regulação do capitalismo provocadas pelas crises do fordismo e do Estado de bem-estar social. Tais mudanças levariam à atualização das formas de regulação estatal na economia e a processos de reorientação ideológica conduzidos pelas exigências da concorrência de mercado.

O que os mais diversos autores têm apontado é que desde as suas origens o neoliberalismo esteve relacionado com o esvaziamento da democracia, já que medidas para limitar o poder econômico são consideradas interferências políticas que ameaçam à liberdade.

A liberdade, na visão dos considerados teóricos do neoliberalismo, se materializa na ordem da concorrência, e não no contrato social. Trata-se, portanto, de construir o mercado blindado das demandas democráticas e de redistribuição igualitária, "livre" de constrangimentos sobre o investimento e a lucratividade capitalista. Isso explicaria o movimento para desmantelar os sistemas de proteção social, a oferta pública, gratuita e universal de saúde e educação e a facilitar a captura do orçamento público por interesses privados.

Mas há os que considerem um absurdo a vinculação entre autoritarismo e neoliberalismo e, para tanto, fornecem exemplos de governos e países democráticos que adotaram o receituário neoliberal.

Pierre Dardot denuncia a confusão teórica daqueles que acusam essa incompatibilidade. Segundo o autor francês, é preciso distinguir: 1) autoritarismo como regime político; 2) autoritarismo político neoliberal e 3) a dimensão autoritária irredutível do neoliberalismo. O primeiro não é exclusividade de governos neoliberais. O segundo é resultado da acomodação das políticas neoliberais a distintos regimes políticos, democráticos ou autoritários, o que é determinado pelas circunstâncias históricas. Já o terceiro é o que Dardot chama de "restrição do deliberável", o que, em outras palavras, é a decomposição das instâncias de participação popular por meio de "reformas" e uso de medidas jurídicas excepcionais, especialmente no que se refere a decisões econômicas.

Guedes e Bolsonaro personificam a versão brasileira do centauro do neoliberalismo, que é metade liberdade econômica para o andar de cima da pirâmide social e metade repressão e violência para o andar de baixo. De vez em quando somos forçados a lembrar que é um único ser, com os mesmos projetos e o mesmo negacionismo da realidade social. No fundo, quem quer a liberdade de Guedes pede por autoritarismo; quem quer o autoritarismo de Bolsonaro é porque demanda a liberdade de Guedes.


Texto de Silvio Almeida, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Nosso destino é a estupidez

 

Um mês e meio depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, o economista Celso Furtado teve de deixar o Brasil. Seu nome estava na primeira leva de brasileiros com os direitos políticos e civis cassados. De uma lista aberta pelo presidente deposto João Goulart e pelo deputado Leonel Brizola, Celso era já o 26º. Entre os motivos para isto estavam sua passagem pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), a criação e presidência da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e ter sido o primeiro ministro do Planejamento do país. No Brasil dos generais, o ex-pracinha Celso Furtado não podia ser deixado à solta. Estava com 43 anos.

Seu primeiro destino foi Santiago do Chile. Mas não passou muito tempo por lá. Tinha convites de três universidades americanas para lecionar economia: Harvard, Columbia e Yale. Escolheu Yale, onde ficou de setembro daquele ano a junho de 1965, e só saiu porque o governo brasileiro pressionou a congregação para não renovar seu contrato. Foi para Paris, contratado pela pós-graduação da Sorbonne, em ato assinado pelo presidente De Gaulle, para ensinar economia do desenvolvimento. Somente em 1968 teve 15 convites para ser paraninfo de turma.

Em 20 anos de Sorbonne, Celso formou futuros presidentes da República e ministros de Estado, publicou livros e trabalhos, falou para governos e privou com potestades como Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, James Baldwin, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Octavio Paz, Jürgen Habermas —alguns, seus amigos.
As cartas que mostram essa extraordinária trajetória estão no livro recém-lançado “Celso Furtado - Correspondência Intelectual 1949-2004”, organizado por Rosa Freire d’Aguiar.

Os militares o condenaram a levar seu conhecimento a plateias alheias ao seu coração. O que o Brasil dispensou, o mundo, agradecido, acolheu. Nosso destino é a estupidez —vide hoje.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Até que foi bom não poder pular os comerciais da televisão aberta

 

Inglaterra, século 16, agência de publicidade. “Adoramos sua ideia, Shakespeare, mas o cliente quer Hamlet segurando um biscoito, não um crânio. Tem como? E em vez de ‘ser ou não ser’, que tal ‘vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais’? Confia, esse slogan vai pegar.”

E pegou mesmo. Não no palco de um teatro elisabetano, mas através do televisor de tubo da minha casa. Junto com outros clássicos que declamo até hoje, entregando minha idade. Afinal, o tempo passa, o tempo voa. E posso falar? Até que foi bom não poder pular os comerciais.

Em vez de robôs que enviam spam e algoritmos que esfregam produtos na nossa cara após um clique inocente na promo de um tênis, éramos manipulados por yuppies brilhantes, que vendiam caninha em Cannes como uma boa ideia.

Durante os intervalos do “Pica-Pau”, eu consumia o iogurte que vale por um bifinho e cantarolava seu jingle: “Carinhoso”, do Pixinguinha. Minha mãe ariava panela e ajeitava a antena da TV com a palha de aço de 1.001 utilidades. Meu pai se barbeava com o aparelho das lâminas duplas. “A primeira faz tchan, a segunda faz tchun.”

Cresci sabendo que tem coisas que só a publicidade faz por você. E, mesmo que eu cursasse todos os doutorados e MBAs do mundo, em Harvard ou no MIT, ficaria devendo lições à propaganda. Ela me ensinou sobre a metafísica platônica do xampu Denorex (que “parece, mas não é”) e redefiniu paradoxos como o do gatinho de Schrödinger da Parmalat.

Tivesse assistido àquela genial campanha de fraldas de 2006, até Freud poderia resumir volumes de sua obra com o bordão “respira, bumbum” —o que também renderia um bom mantra para nosso sádico governo federal.

Publicitário da série “Mad Men”, Don Draper dizia que o amor é um negócio inventado por sujeitos como ele para vender meia-calça. Ainda assim, amamos muito tudo isso.

Quem disse que não dá? Nos comovemos com a poesia de um comercial tão inesquecível como o do primeiro sutiã. Se bater vergonha, disfarça. Fala que não engasgou com choro: foi o bichinho do rran-rran.

Agora, ainda que você discorde de tudo o que escrevi, pelo menos alguma coisa a gente tem em comum: nostalgia. Inclusive, se deixei passar o slogan da sua vida, perdão. Minha memória não é mais uma Brastemp. Insira, aqui, seu favorito. Sempre cabe mais um.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

sábado, 24 de abril de 2021

Por que Marc Ferro foi crucial para a lupa que investiga o cinema

 

Marc Ferro, historiador francês que morreu nesta quarta-feira, aos 96 anos, vítima da Covid-19, em Paris, é conhecido no Brasil por seus trabalhos sobre a Revolução Russa e as relações entre a história e o cinema. Mas se voltou ainda a inúmeros temas. Em comum, a reflexão sobre a escrita da história e seus usos e abusos na legitimação de ações no presente.

Nascido em 1924, ele perdeu o pai aos cinco anos. Sua mãe, modista de uma casa de alta costura, foi uma influência fundamental em sua vida. Ela tinha um sobrenome judeu, mas não tinha consciência disso. A ocupação nazista os tornou judeus.

Ferro fugiu de Paris graças ao conselho de seu professor de filosofia, Merleau-Ponty. Em 1944, participou da resistência, mas na volta, não reencontrou sua mãe, que fora executada em Auschwitz.

Vivenciou esses e outros acontecimentos que moldaram sua visão sobre a história, em que pesquisa e erudição, as experiências de vida, a intuição e a coragem de contrariar o estabelecido permitiram percepções iluminadoras e engajadas, até o fim de sua vida.

Prova disso é a relação íntima que estabeleceu com as tecnologias audiovisuais. Não foram apenas objeto de estudo, ou de difusão do conhecimento.

Especialista e orientador de estudos sobre a Rússia, aproveitou o surgimento das antenas parabólicas e conseguiu, de seu escritório na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, instalar uma televisão para acompanharem a difusão das mudanças que ocorriam com a Perestroika. À sua maneira, em 1985, antecipava a conexão direta em tempo real da internet.

A vasta obra, que se inicia nos anos 1970, abrange a história da Rússia, da França, das colonizações, a Segunda Guerra. Essa bagagem de pesquisas acompanha e se enriquece no seminário sobre cinema e história, com temáticas trazidas por estudantes de vários países.

A partir do embate constante entre textos e imagens —usados em seus livros com a mesma legitimidade—escreve sobre as "Falsificações e Tabus da História" e, em 2015, "A Cegueira"—, muito oportuno, porque estuda o motivo de "nos recusarmos a ver a realidade”.

Ao se voltar de forma pioneira para o estudo das imagens audiovisuais, vistas com desconfiança e desprezo pelos historiadores até então, podemos entender sua postura em relação a tudo o que escreveu e aos vários filmes e programas de televisão que realizou ao longo de sua carreira.

Em 1964, enquanto redigia sua tese de doutorado sobre a Revolução Russa, participou da realização de um documentário sobre a Primeira Guerra. Diante das imagens dos arquivos, observou que traziam informações diferentes daquelas que a história escrita consagrara.

Ora, há uma história escrita pelas imagens que é diferente da história dos livros. Desafiar essa certeza, esse paradigma dos historiadores rendeu muitas críticas a ele. Afinal, o cinema não é sério como a história; ele manipula.

Ora, a escrita da história não manipula? O cinema mandava essa questão de volta para a história. O cinema escreve, sim, a história. “Documentário ou ficção é história.”

Com esse pensamento, Ferro abriu aos historiadores esse vasto campo de estudos que se espalhou pelo mundo, incluindo o Brasil, onde Ferro se apresentou várias vezes, numa delas conforme sua memória, teve o seu maior público, mil historiadores.

De seus ex-alunos no Brasil, há o livro "Cinematógrafo", um olhar sobre a história.

A constatação crítica sobre a escrita da história já vinha de sua experiência como professor em Orâ, na Argélia, entre 1948 a 1956. A história do colonizador que ele trazia como verdadeira e universal não era aceita pelo colonizado. “Não é essa a nossa história.”

Ele passa a aprender com os alunos outras histórias e paradigmas. Descoloniza sua visão de mundo, assim como tantos outros que passaram pela experiência colonial. Como Fernand Braudel que o leva para os Annales, a revista que desde 1929 vinha revolucionando os estudos de história.

Em sua tese de doutorado, Ferro pôs em questão dogmas sobre a Revolução Russa. Uma revolução feita pelos proletários conforme dizem os livros, o poder? Não era o que diziam as fontes que pesquisara, as imagens fotográficas e fílmicas tomadas da própria revolução.

Foram os soldados que voltavam da guerra, as mulheres e os camponeses que fizeram a Revolução Russa. Desafiava, assim, a imagem e a história que o Partido Comunista construíra.

Novas visões sobre a história da Segunda Guerra Mundial se estabeleceriam de forma profunda e partilhada com o público, durante 12 anos —entre os anos de 1989 e 2001— no programa semanal Histoire Parallèle.

Após a queda do Muro de Berlim, no prenúncio da União Europeia, no canal de televisão franco-alemão La Sept, conhecido posteriormente como Arte, selando a amizade dos antigos países rivais, Marc Ferro e um segundo historiador mostravam e comentavam os cinejornais produzidos em seus países durante a guerra.

Como as imagens construíam a guerra? Como as populações a deviam vivenciar? O que essas imagens não mostravam? Exercício de compreensão histórica e compaixão. Um humanismo que marcou as inquietações e contribuições de Marc Ferro, e que nosso tempo parece ter perdido.


Texto de Sheila Schvarzman, na Folha de São Paulo. A autora é doutora em História pela Unicamp, e foi aluna de seminários com Marc Ferro. 

Viet Thanh Nguyen, vencedor do Pulitzer, desmistificou lugar de fala

 

Viet Thanh Nguyen nasceu no Vietnã. Tinha quatro anos quando, na véspera das tropas comunistas tomarem Saigon, em 1975, sua família fugiu para os Estados Unidos. Formou-se em Berkeley, casou com uma artista vietnamita, tem dois filhos e ganha a vida como professor universitário.

Estreou tarde na arte, aos 44 anos, ao publicar “O Simpatizante”, em 2015. Deu-se o inesperado: o romance vendeu 1 milhão de exemplares; levou o Pulitzer e uma penca de prêmios; ganhou elogios extáticos; abiscoitou bolsas, cátedras, colunas —lançado no Brasil pela Alfaguara, deu-se o esperado: ninguém o leu.

“O Simpatizante” é pertinente, inventivo e, o mais surpreendente, de rolar de rir. Começa com a queda de Saigon, onde o narrador tenta sobreviver ao barata-voa. Homem da CIA, ele é ajudante de ordens de um figurão do regime, um generaleco ensebado que lembra Augusto Heleno.

Só que não. Na real, é um espião infiltrado nas fileiras pró-ianques, um vermelho disfarçado de colabô que, na hora do bem-bom apoteótico, recebe a ordem de ir com os podrões para os Estados Unidos. Ali, vigiará Augusto Heleno, que treina uma milícia de palermas para retomar o Vietnã.

O enredo rocambolesco faz com que os personagens virem o contrário do que eram no início. Mas a constelação de temas se mantém: o refugiado como estrela-guia da sociedade atual; o racismo que o torna invisível; a humilhação perpétua como signo do novo tempo —como a do narrador, um vitorioso clandestino que se enterra na vala dos vencidos.

Com tudo isso, “O Simpatizante” esmerilha o “lugar de fala”, satirizando-o e o desmistificando. Seu narrador, por ser vietnamita e americano, estar lá e cá, separa a realidade da representação e finca a faca ali onde a ideologia pulsa —na má consciência da arte para massas.

Na cena mais bufa do romance, ele dá consultoria a uma superprodução americana sobre a guerra no Vietnã. Constata que os vietnamitas não têm direito a lugar nenhum, a uma reles fala. Amarelos em andrajos, suados e imundos, eles são estripados por americanos trágicos.

Fica claro que “O Simpatizante” não se refere a um hiperblockbuster do tipo “Rambo” —e sim a uma obra-prima do naipe de “Apocalypse Now”, com seus ecos de Conrad e Eliot.

O Vietnã de Nguyen não foi uma tragédia americana que enlouqueceu o coronel Kurtz de Marlon Brando. Foi uma épica nacional comandada e vencida por Ho Chi Minh —que, como repete o narrador, ensinou que nada é mais precioso que a liberdade e a independência.

Saiu há pouco nos Estados Unidos o esperado segundo romance de Nguyen, “The Committed”. Surpresa das surpresas, o protagonista comprometido de seu título é o mesmo de “O Simpatizante”, que agora quer ser burguês. Para fazer a acumulação primitiva de capital, trafica drogas.

Ele passou por um campo de reeducação no Vietnã, onde torturadores arrebentaram-lhe a alma, e está em, ulalá, Paris. Fala a língua por ser o filho bastardo de um padre católico com uma camponesa de 13 anos —seu apelido na bandidagem é Crazy Bastard.

Em busca de um nicho no mercado de haxixe e coca, ceva beletristas como o Maoísta PhD (inspirado em Alain Badiou) e BFD (um misto de BHL, o picareta Bernard-Henri Lévy, e DSK, o estuprador Dominique Strauss-Kahn). O escárnio é rombudo.

Rombudo em excesso, se bem que sempre hilário. A guerra entre os rufiões do norte da África e os do sul da Ásia, por exemplo, é uma pândega de porres e bordoadas. Como no romance anterior, contudo, “The Committed” não perde a perspectiva pós-colonial.

Ou seja, para franceses de bom berço, argelinos e líbios formam um bafafá indistinto, árabe e pardo. E a gangue multiasiática de Crazy Bastard não passa de sete anões de olho puxado, vendendo miojo por lámen no Delícias da Ásia, o pior restaurante oriental de Paris.

À medida que a violência incrementa a trama, crescem também as elucubrações filosóficas e políticas —o leão de chácara de um bordel lê Voltaire enquanto entretém a freguesia.

Doutas, as citações grifam a condição colonial: Fanon, Aimé Césaire, o Sartre de “o europeu só se tornou homem quando criou escravos e monstros”. O colonizado, pois, pode ser tanto Ho Chi Minh como Crazy Bastard.

A violência que impera não visa a libertação dos oprimidos, ao contrário: eles guerreiam entre si. Os tiroteios do capitalismo gangsterizado se sobrepõem à crítica, e “The Committed” se torna então um novo “Apocalypse Now” —com Bruce Lee de astro e Tarantino na direção.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Falar é perigoso

 

Faz uns dois meses que minha filha, com três anos, começou a formular umas frases mais complexas, meio poéticas. Ontem entrou no meu quarto e disse, em tom de sincerão: “Mamãe, você fala muito”. Eu ri, e ela continuou: “E falar é perigoso”. Tentei entender se isso vinha de algum desenho, de algum trecho de conversa que ela pescou pelo ar, mas ela insistiu: “Xiiiiu, mamãe, cuidado!”.

Por causa da pandemia, Rita ainda não voltou para a escola e eu ainda não voltei para a minha rotina de reuniões presenciais, fisioterapias supostamente milagrosas e encontros com amigos. Ficamos o dia inteiro enfurnadas aqui, e ela deve estar cansada da minha voz. Até eu estou cansada (e eu, de fato, falo pra cacete). Ao apontar meus excessos, estaria Rita me contando que corro o risco de ser vista por ela sem a minha potência?

Talvez. E outro exagero insuportável vem ocorrendo justamente com o uso da palavra “potência”. Desde que os publicitários, os psicanalistas, os escritores, as influencers feministas, os advogados, o administrador de condomínio do meu prédio, você, sua prima de 12 anos, sua tia do Zap e eu passamos a meter a palavra potência em qualquer texto, seja de Instagram ou de uma crônica aos 45 do segundo tempo (no caso, esta que você está lendo), a potência se tornou um falo tão brocha, mas tão brocha, que Freud precisaria repensar toda a sua teoria a partir da inveja de uma vagina silenciada.

Se há cinco anos o termo “empoderamento” foi tão usado, mas tão usado, mas tão usado, que me deu vontade de pedir para um professor de crossfit me sustentar enquanto eu lavava as suas cuecas, agora a potência me faz ter vontade de andar pelas ruas pelada e chorando, feito um boneco de posto alucinado, escancarando, ao mesmo tempo, a minha flacidez e a minha covardia.

Temo por mim em relação a outros abusos. Usaram tanto “afeto” e “empatia” que eu passei a achar que o egoísmo seria a única bandeira possível ao iconoclasta.

O que será de nós depois da derrocada simbólica e energética da episteme, do propósito, da linha tênue, dos corpos, da resiliência, da importância do brincar, do “vamo time!”, da jornada e do “performar”?

Pior do que “outros saberes” é essa modinha de escrever “saberes outros”. Amigo, você não é o Guimarães Rosa. Pare de inverter as coisas para parecer que está sentindo de um jeitinho muito especial. Pare de “muito sentir”. Se você achou algo inesperado, não diga “o inesperado” em uma frase isolada dentro de um blá-blá-blá para trazer toda uma dramaticidade, a menos que você seja irônico ou tenha deficiência de ferro.

Tudo bem que 99% das teses de doutorado tenham títulos como “Sobre como a potência dos propósitos afeta nossos corpos enquanto seres desejantes em relação à episteme”, mas, quando alguém escreve assim no Instagram ou em uma crônica aos 45 do segundo tempo, eu só consigo voltar ao meu velho desejo de performar uma coluna intitulada “No seu” e na qual a palavra “cu” é repetida em 3.500 caracteres. Não faça isso comigo.

No mais, hoje Rita me disse que era perigoso comer, tomar banho, fazer xixi e beber água. Ela só aprendeu a palavra “perigoso” e estava curtindo. Está tudo certo. Viver é muito perigoso.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Um sinhozinho

 

O nome dele é Jack, mas podia ser um Zé. Sua boca é humana em corpo que, apesar do terno e gravata, é de macaco-prego. Está sendo interrogado por detetive loiro, acinzentado pelo nevoeiro do cigarro, num curta de David Lynch, em que tudo é branco e preto. Trata-se de "What Did Jack Do?" (2017).

Ali, ao seu costume, o diretor joga com o absurdo: o macaco-humano é acusado de crime. A cena remete ao corriqueiro nos grandes países escravistas, aqui, na África do Sul, nos Estados Unidos.

Num prolongamento simbólico da escravidão, a sujeição dos negros é precedida por seu rebaixamento ao mundo da natureza: em vez de pessoa, é visto como animal. E, como tal, é sempre suspeito e requer disciplinamento.

O raciocínio vive por aí. Quem o emitiu nesta semana foi Vinícius Pereira da Silva. Dos píncaros de sua parca eloquência tratou a porteira do prédio onde mora como um bicho: "Macaca! Chimpanzé! Chipanga!". Um adjetivo pareceu-lhe insuficiente. Talvez porque, de tanto uso, "macaco" tenha gastado parte da potência depreciativa, daí o recurso a outro símio conhecido e ao sinônimo inusual.

Tudo porque Silva não foi atendido de pronto. Recusou-se a se identificar na entrada da garagem, conforme a regra do condomínio, supondo que todo mundo deve reconhecer um Senhor. Decerto, se a porteira não verificasse a identidade do motorista, o xingamento viria do mesmo modo, por descumprir as ordens.

O sinhozinho goiano não mora em qualquer prédio, mas no Residencial M Times, duas torres inspiradas na "emblemática e pulsante Times Square", o sonho turístico brasileiro.

Foi lançado no mesmo ano do filme de Lynch. Nos anúncios, prometia o modo de vida da classe média alta, em projeto que "equilibra custo e benefício na medida certa para colocar sua família no coração de onde a vida acontece". Tem porcelanato e varanda gourmet. Tem elevador social e de serviço, de modo que o sinhozinho pode evitar a mistura. Cada um no seu quadrado.

Esse senhor é tipo conhecido. Bermuda longa, abdome proeminente, bíceps definidos envolvem sua prepotência desbocada: "Você não presta, desgraça. Você é uma merda, abaixo de zero", ouviu dele a porteira. É o cidadão de bem dos tempos bolsonaristas, sem máscara no rosto e com revólver na gaveta: "Vou meter minha arma na cintura e vou aí resolver".

Ameaçou porque, além de malograr o bem servir, a "chipanga" tampouco se submeteu ao castigo. Em vez de se sujeitar, gravou o ataque. Seu filme é tão surreal quanto os de Lynch. A imagem some, mas, em off, pelo interfone, a intimidação segue. O sinhozinho se declara policial, da classe dos que apertam pescoços até a asfixia.

Isso na semana do julgamento do assassino de George Floyd, outro crime racial filmado. Lá se viu o quanto instituições e lideranças políticas importam. Enquanto Trump congratulou os supremacistas do Proud Boys, Biden fez pronunciamento antirracista e recebeu a família enlutada de Floyd. Presidentes dão —num sentido ou noutro— o exemplo.

"Chipanga" é vocábulo antigo, como o clima do curta de Lynch. Mas cada história tem um desfecho. Jack tentou a fuga, a porteira encarou a briga. Denunciou o crime racial. Os sinhozinhos não vão mudar se não houver punição. As vítimas sim, vem mudando, como atesta a goiana.

"Eu espero que todo mundo que passou ou venha a passar por isso consiga denunciar, porque só assim a gente vai conseguir que essas pessoas nos respeitem e nos tratem como seres humanos".


Texto de Angela Alonso, na Folha de São Paulo

Identidades, exclusão e fragmentação



Numa obra pouco conhecida no Brasil, "Identidade e Violência", Amartya Sen, autor indiano laureado com o Prêmio Nobel de Economia, defende que temos múltiplas identidades e que a violência se fortalece quando consideramos que uma delas deveria ser hegemônica, com exclusão das demais.

Para ilustrar a tese, ele se define como hindu, bengali, filósofo amador, ateu, homem, feminista e escritor. De fato, quando aceitamos que apenas a religião ou a nacionalidade nos definem, torna-se tentador nos definirmos em oposição ao outro, também definido como alguém unidimensional.

A história é repleta de exemplos de eleição de uma identidade única, que nos opõe a um conjunto humano apresentado como o culpado dos males que nos afligem. São os uigures para os chineses, os rohingya para os birmaneses ou até os nordestinos ou as elites, considerados por alguns, no Brasil, como suspeitos desde o nascimento ou por um comportamento negativo a eles genericamente atribuído por políticos populistas.

Mas, mostra Amartya Sen, temos sim múltiplas identidades que podem viver em harmonia dentro de nós e em sua relação com os que são portadores de outras. Aliás, segundo Jacques Delors, equilibrar esses dois atributos é uma das tarefas mais importantes da educação, a de assegurar o que ele chama de "aprender a ser" e "aprender a viver juntos".

Caso contrário, reafirmamos a fragmentação política em que não é mais possível um projeto societário, pois meu grupo identitário se torna mais importante do que o todo. Mais grave ainda é quando defino o todo a partir da exclusão das identidades que não me fazem sentido, num processo de expurgação do que me incomoda ou que julgo pouco "higiênico" para integrar a sociedade.

Ao ler o mais recente livro de Lira Neto, "Arrancados da Terra", veio-me essa imagem, não como algo contemporâneo, mas como um fenômeno constante que já deveríamos ter superado. Ao escrever sobre a saga de judeus que, perseguidos pela Inquisição e por um sentimento de que a eles caberia a culpa por todo o sofrimento vivido pelos demais, perambulando por diferentes territórios —inclusive o Pernambuco de Nassau— antes de alcançar Nova York, ele mostra como o estigma associado à identidade étnica do grupo foi fonte de exclusão e privação de direitos.

Em continuarmos com essa visão, presente em múltiplas discriminações ainda presentes —e recentemente reforçadas no Brasil—, consolidamos também uma lógica de fragmentação, em que a culpabilização do outro substitui-se ao enfrentamento dos problemas que verdadeiramente nos afligem e nos impedem de avançar como país.


Texto de Claudia Costin, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Pandemia nos faz ter saudade de bloco ruim de Carnaval e cerveja quente

 

Essa pandemia está marcada, entre outras coisas, pela saudade. Saudade da família e dos amigos. Saudade de quando éramos felizes. De quando tínhamos dignidade.

Sentimos saudades de coisas banais, como ir ao supermercado sem ser uma operação de guerra. De poder ficar minutos no corredor de produtos de limpeza, pensando se leva Pinho Sol ou Limpol, sem ter medo de levar uma cepa nova para casa.

Ficamos saudosos até de coisas que de nunca havíamos sentido saudade.

É só lembrar algo desagradável que fazíamos no passado. Pelo simples fato de não estarmos em uma pandemia, aquilo se torna agradável.

Outro dia, senti saudade de frequentar bar lotado e passar horas de pé. O garçom trazer um balde de gelo e deixar no chão da calçada, com um pote de amendoim. Como era bom compartilhar amendoim com os amigos sem pensar nas consequências disso.

Sinto falta de ir a restaurantes ruins de shopping. Daqueles que servem cebola empanada com molho industrializado. Gastar fortunas com um bife duro acompanhado de um milho ainda mais duro. Ficar incomodada com os garçons cantando parabéns aos clientes em uma língua aborígene inexistente.

Saudade de ir em pizzaria com parentes e passar fome porque não decidem se pedem meia calabresa meia muçarela, ou meia muçarela meia calabresa. Passar raiva porque alguém insiste em pedir pizza de estrogonofe. No fim, comer a pizza de estrogonofe, a única que sobrou.

Como faz falta ir a festival de música, mesmo detestando festival de música. Descobrir que o festival só é acessível por trem e uma hora de caminhada. Dentro do festival, os palcos são batizados com nomes como “palco na casa do chapéu” e “palco longe pra dedéu”. Assistir ao show tomando cerveja quente e ver que o cabelo da menina da frente está dentro do copo.

Saudade de ir em bloco ruim de Carnaval. Tomar cerveja latão quente. Ficar com vontade de ir ao banheiro e ter que usar um toalete do botequim. Toalete é o que diz na placa da porta porque, dentro, há apenas um vaso sem assento ou descarga. Se esquecer que o banheiro é público e, por acidente, se sentar no vaso. E sair atrás do bloco porque é Carnaval.

Saudade de quando não tinha saudade de tudo isso.


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

Livro, um passaporte para além

 

Trancados em casa, e já estafados de tantas telas, temos nos livros uma válvula de escape ainda maior que de costume para vislumbrar paisagens e mundos além das paredes que nos cercam.

Imagino o quanto já se escreveu, nesta interminável pandemia, sobre viajar com livros. Estou pensando não em relatos de viajantes, mas em livros que, sem falar propriamente de viagens, aguçaram-me na vida a vontade de conhecer lugares.

Também são muitos. Recorro à memória para, embaralhando a cabeça como um globo de loteria, deixar que escoem as bolinhas sorteadas ao acaso.

A primeira tarefa é eliminar os mais óbvios, os livros de viagem. Há para todos os gostos, dos introspectivos aos aventureiros —e inclusive aos que são ambos, como “Cem Dias entre Céu e Mar”, do navegador solitário Amyr Klink.

Nesta categoria —da qual prometi não falar, mas já falando— entrariam também a tresloucada perambulação beatnik de Jack Kerouak, “Pé na Estrada”; ou a romântica aventura juvenil de Che Guevara, “De Moto pela América do Sul”, que muito depois inspiraria o filme “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles. Não confundir com os “Diários de Bicicleta”, relatando viagens sobre duas rodas por cidades tão díspares como San Francisco, Buenos Aires e Manila, nas Filipinas, realizadas pelo músico David Byrne (da banda Talking Heads).

Não, não é deles que queria falar. Estava pensando mais em livros como “Paris é uma Festa”, com relatos escritos por Ernest Hemingway no período em que não era turista, mas um morador da cidade, em cujos cafés, munido de lápis (literalmente) e papel, inventava livros. Me deu vontade de conhecer Paris, bem antes de ter pisado lá.

Da mesma forma que “Shogun”, de James Clavell, acendeu minha curiosidade pelo Japão: embora a história se passe no século 17, ela é vista pelos olhos de um ocidental (um marinheiro inglês) impactado pelas diferenças culturais que presencia —eu intuía que o moderno Japão, no fundo, tivesse muito daquelas idiossincrasias seculares, o que se confirmaria quando finalmente conheci o país.

“Sob o Sol da Toscana”, de Francis Mayes, é de dar água na boca por essa região da Itália cuja extrema beleza, no entender de Stendhal, poderia literalmente enlouquecer de enlevo uma pessoa. Mas não tem a mesma dose fantástica de humor que o inglês Peter Mayle imprimiu ao relato de quando se mudou de Londres para o sul da França (“Um Ano da Provence”), um projeto que parecia ter-se tornado inescapável para mim quando o li.

E Nova York? Parece materializar-se em concreto, parques e pessoas quando lemos romances de Truman Capote (como “Bonequinha de Luxo”), ou de Tom Wolfe: deste, “Fogueira das Vaidades” nos faz sentir na cidade, seja em festas nas coberturas dos yuppies, na periferia liderada por pastores charlatães, ou nos bares dos jornalistas ébrios.

Pouco importa que alguns deles se passem em outras épocas —as cidades e países viram personagens involuntários, e em mim acenderam o desejo de conhecer ou revisitar. Vale para a Praga de Milan Kundera (“A Insustentável Leveza do Ser”); a Istambul de “A Ponte das Turquesas”, uma história da cidade escrita pela brasileira Fernanda de Camargo-Moro; a Índia de Herman Hesse (“Sidarta”); ou —repetindo uma cidade— as memórias do jornalista americano A. J. Liebling em “Fome de Paris - Memórias de um Gourmet Apaixonado”.

A lista seria imensa. Mas interrompo para adicionar uma outra categoria: a loucura da pandemia é tamanha que não surpreende que muita gente use o escapismo dos livros para sonhar não somente com outros lugares existentes, mas também para destinos mágicos, janelas para delírios infinitos.

Aí me lembro dos mundos fantásticos descritos em livros lidos na adolescência, como “As Brumas de Avalon”, de Marion Zimmer Bradley, ou “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. E—lido agora na quarentena com meu filho— o mundo fantástico de “Harry Potter”, de J.K. Rowling. Ou finalmente (e mais adequado à idade), “As Cidades Invisíveis”, inventadas por Italo Calvino: este atualmente frequentando minha mesa de cabeceira.


Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Ninguém precisa ser o príncipe Philip para ter um enterro personalizado


Para a minha cerimônia fúnebre, talvez eu escolha as músicas. Aos próximos, já avisei que quero ser cremado. Mas paro por aí.

O príncipe Philip, de acordo com o exaustivo noticiário destes dias, fez bem mais. Não escolheu apenas o carro fúnebre —o tal Range Rover verde que apareceu nas fotografias.

Ao longo dos últimos anos, dedicou bastante do seu escasso tempo aos detalhes da coisa toda.

Primeiro, mudou o tom de verde do veículo —tinha de ter exatamente o matiz militar que correspondesse a seus tempos de serviço.

Mas o príncipe foi além, e isso me assusta um bocado. Desenhou ele mesmo os pinos de metal, com revestimento de borracha, que possibilitaram o perfeito encaixe do esquife na carroceria do jipe. Temia, sem dúvida, que o caixão escorregasse.

Existe alguma coisa de perverso, não sei, nesse detalhismo todo. É como se ele estivesse preparando caprichosamente um belo susto cômico, um trote macabro —uma tampa de mola que de repente abrisse o caixão— e, em seguida, reprimisse a ideia, cuidando de evitar todo acidente que alguém (a saber, ele mesmo) pudesse imaginar.

Ao mesmo tempo, o planejamento parece ser mostra de certa sanidade. Pois o príncipe Philip, ao longo da vida, nunca mandou em nada. No funeral, teve, literalmente, a última palavra. Foi uma compensação.

Mas o príncipe não é um caso isolado. Os hábitos da sociedade de consumo exercem sua influência post-mortem.

Funeral num jipe? Não, o gosto do freguês pode ser outro. Na Inglaterra, os entusiastas da Volkswagen podem encomendar uma Kombi para servir de carro fúnebre; inteirinha dourada, ou prateada, como você preferir.

Passou sua vida em cima de uma moto? Sem problema. Fundada pelo reverendo Paul Sinclair em 2002, a Motorcycle Funerals Ltd. anuncia seus serviços. Uma belíssima motoqueira usando jaqueta de couro preta conduz uma Harley Davidson, uma Triumph ou uma Suzuki Hayabusa (você escolhe), com uma carrocinha lateral, de duas rodas, onde o caixão terá trajeto seguro até o destino desejado.

Os militantes do ciclismo também podem expressar, ainda uma vez, sua opinião. Bicicletas, puxando caixões ecológicos (e leves) de vime ou papelão, disponibilizam-se para seu último descanso.

E se a pessoa for, ao mesmo tempo, fã de Kombis e de bicicletas? A Volkswagen Funerals atende a essa minoria do público, oferecendo um “rack” na capota da Kombi para que a bicicleta não fique abandonada.

Mas, como estamos na Inglaterra, o enfoque tradicional não foi abandonado. Por menos de R$ 20 mil, você contrata uma carruagem vitoriana, com quatro cavalos de penacho, e um distinto senhor de cartola nas rédeas do processo.

Conhece-se o caso de Gana, país onde a tradição é criar os mais bizarros tipos de caixão de defunto. O pescador profissional encomenda o seu, em forma de tainha, ou lata de atum. O professor universitário cria um caixão imitando livro encadernado. O tabagista impenitente vai para a cova numa flip-box de Camel ou Marlboro.

Aviões, elefantes, cenouras. Nikes, foguetes, seringas: tudo é autoexpressão e, quem sabe, festa. No oposto dessa tradição, a Inglaterra também oferece serviços para quem detesta funerais —o próprio ou o dos outros.

Você liga para a companhia, eles retiram o defunto da sua casa, cuidam da coisa toda sem choro nem vela, e dali a uma ou duas semanas lhe devolvem uma urna simples com as cinzas do infeliz. É uma espécie de delivery reversa. A menos que nem disso você faça questão, e aí eles mesmo espalham as cinzas em qualquer lugar.

O pior é que entre as empresas encarregadas disso está a Co-op, uma rede de supermercados.

São os dois polos da coisa: de um lado, enterros personalizados, para motoqueiros, filatelistas, seguidores da religião druida, maníacos da ópera italiana. De outro, o anonimato completo, a redução marciana a um punhado de cinzas.

Não sei em Gana; mas o que há de comum nos dois processos talvez seja o extremo individualismo contemporâneo. Ninguém cuidará de mim (cremação delivery), de modo que é melhor eu mesmo cuidar dos detalhes do enterro.

Mesmo morto, eu me manifesto. Gritarei quem sou, quem fui, quem eu quis ser, ao grupo esparso que, no cemitério, checa as mensagens do celular.

Ruim? No Brasil, as valas coletivas e os enterros noturnos continuam, numa Idade Média de peste, fanáticos e charlatães.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 19 de abril de 2021

George Floyd e os 257 tiros


“Onde fica aquele lugar onde o que não deveria ‘acontecer a ninguém’ acontece todo dia?”, pergunta a filósofa Denise Ferreira no magistral ensaio “Ninguém: direito, racialidade e violência”.

Onde fica aquele lugar onde o pescoço de Floyd é esmagado por quase 10 minutos pelo joelho do policial Derek Chauvin? Onde fica aquele lugar onde 257 tiros são disparados por militares contra o carro de Evaldo dos Santos? Onde fica aquele lugar onde os militares que assassinaram Evaldo estão há dois anos sem serem julgados e, quando o forem, serão submetidos a um julgamento militar?

Onde fica aquele lugar onde a polícia matou, em 2019, seis vezes mais do que a dos EUA? A polícia no Brasil matou 6.357 pessoas (79% negros) em 2019 e a polícia nos EUA matou 982 em 2020, sendo a taxa de negros mortos duas vezes maior do que a de brancos nos EUA.

Onde fica o lugar onde já esquecemos o nome de Evaldo dos Santos, mas dedicamos incontáveis horas ao caso George Floyd como se fosse um espetáculo exótico que nunca acontece aqui? Onde fica aquela democracia racial onde se tem a ilusão de que polícia não escolhe cor porque seríamos todos miscigenados, mas pardos são mortos 3,15 vezes mais do que brancos?

Onde fica aquele lugar onde já esquecemos quem são Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique, os três meninos negros desaparecidos desde dezembro em Belford Roxo? Onde fica aquele lugar onde a nossa dor por mortes negras é seletiva?

Onde a vida de João Alberto, assassinado em um Carrefour em Porto Alegre, valeria R$ 1 milhão, o mesmo valor indenizado pela morte de um cachorro no Carrefour em Osasco em 2018, enquanto Mineápolis pagará R$ 150 milhões à família de Floyd? Onde fica aquele lugar em que percebemos que mesmo a maior quantia não curará a dor da perda?

O julgamento de Chauvin, em curso desde 25 de março, nos propicia uma radiografia do racismo na atuação policial, cuja origem —aqui e lá— inclui patrulhas para captura de pessoas escravizadas. A defesa de Chauvin normaliza a barbárie. “O uso da força não é atraente, mas é um componente necessário do policiamento”, disse Eric Nelson, advogado de defesa.

De maneira inédita, o chefe da polícia testemunhou contra Derek e a subcultura policial de morte. A defesa de Chauvin culpa Floyd pelo joelho que o esmagou. “Floyd morreu de uma arritmia cardíaca que ocorreu como resultado de hipertensão” e uso de drogas, afirmou Nelson. Defesa de Chauvin culpa os transeuntes não violentos que filmaram a ação, a quem chamou de “multidão hostil”.

O guarda da esquina mata porque quem está assentado no tribunal e no quartel o permite. Quando pensamos que Floyd e Evaldo são casos isolados, esquecemos que há instituições inteiras a permitir o genocídio; racismo ser estrutural não exime, pelo contrário, eleva a responsabilidade de quem o autoriza com sua caneta.

São os militares que defendem que 257 tiros não passam de “estrito cumprimento das leis”. É o Ministério Público do RJ que extinguiu, no último dia 10, o que ainda havia de controle externo da atividade policial, embora fosse ineficaz (Gaesp denunciou só 2,5% das mortes por intervenção policial entre 2015-2019).

O curta-metragem “Dois Estranhos” (2021, disponível na Netflix) mostra que quanto maior for a interação policial cotidiana, maiores são as chances de violência policial.

Onde fica o lugar onde Evaldo possa ir a um chá de bebê? Onde fica o lugar onde Lucas, Alexandre e Fernando ainda possam brincar no campo de futebol? Onde fica o lugar onde Floyd possa ir a uma loja? Poderia ser aqui, mas não é. Devemos, juntos, construí-lo.


Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Não engravidem



Ser mulher não é fácil. Entre humanos, a gravidez é uma condição muito mais perigosa do que entre outras espécies de mamíferos. Há um fascinante debate científico ainda sem conclusão clara sobre as razões para essa maior vulnerabilidade.

Em tempos normais, morrem em nosso planeta cerca de 800 mulheres por dia devido a complicações da gestação e do parto, sem mencionar outros agravos à saúde. A boa notícia é, ou melhor, era, que esse número vinha caindo. Do início do milênio até 2017, houve uma redução de 38% nos óbitos maternos.

A pandemia de Covid-19 mudou isso. E mudou tão dramaticamente que o professor de ginecologia e genética médica Thomaz Gollop, que me chamou a atenção para o problema, recomenda às mulheres que não engravidem até segunda ordem.

Uma revisão sistemática de 40 estudos feitos em 17 países envolvendo mais de 6 milhões de gravidezes, publicada há pouco em “Lancet Global Health”, associou a pandemia a aumento das mortes maternas, fetais, gravidezes ectópicas e episódios de depressão. Os óbitos fetais cresceram 28% em relação ao período pré-pandêmico, os maternos, nos dois países em que foi feita a análise, México e Índia, tiveram majoração de 37%. As ectópicas subiram quase 600%.

Os autores excluíram estudos que tratavam só de grávidas acometidas pelo Sars-CoV-2. Isso significa que a revisão mede principalmente os efeitos indiretos da pandemia, provocados pela saturação dos sistemas de saúde e pela pior aderência das parturientes ao pré-natal.

É aí que entra a segunda parte do problema. Grávidas são, de um modo geral, mais suscetíveis a uma série de doenças. De forma até surpreendente, porém, na primeira onda da Covid-19, elas não foram apontadas como um grupo que causasse especial preocupação. Agora, na segunda onda, talvez por causa das variantes virais, grávidas estão se tornando uma presença cada vez mais perturbadora nas UTIs.


Texto de Hélio Schwartsman, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Ponto e vírgula é legal; não é?

 

O ponto e vírgula (;) é, como se sabe, sujeito singular, apesar do disfarce desse “e” no meio; um sinal de pontuação que vem a ser uma cópula de sinais, ponto em cima, vírgula em baixo; meio a meio, e inteiramente fora de moda.

É claro que isso varia de língua para língua. Falo do português brasileiro; uma língua na qual, convenhamos, o ponto e vírgula estaria hoje quase inteiramente restrito a documentos formais —ou a um certo beletrismo de província, ou a crônicas metalinguísticas como esta— se não fosse imprescindível para desenhar aquela carinha sorridente que pisca ;) .

Afirmar que o ponto e vírgula já virou ou está virando um sinal de pontuação de época é simples constatação. Não faltará quem negue o fato, proclamando vivíssimo o sinal duplo; nem quem, admitindo seu relativo desuso, deplore a ignorância dos falantes por mais esse sintoma clamoroso de decadência cultural.

Na vida real, o ponto e vírgula que Machado de Assis amava —o que basta, óbvio, para garantir sua imortalidade enquanto o português brasileiro existir— não foi muito bem tratado pelo século 20.

O estilo modernista deu início à sua rejeição, identificando-o com afetações bacharelescas; e na segunda metade do século a língua objetiva e direta da imprensa moderna completou o serviço, condenando-o ao relativo ostracismo de hoje.

Digo relativo porque há uma exceção à regra. No manual de estilo que, conscientemente ou não, quase todos os jornalistas dos últimos 50 anos seguem, restou ao ponto e vírgula uma única função; importante, mas solitária.

Estou falando do papel de, numa enumeração, separar elementos que contenham vírgulas internas. As vírgulas habituais tornam-se inadequadas para a tarefa por motivos evidentes; é preciso criar uma hierarquia.

Assim: “Ao longo da pandemia, Bolsonaro boicotou o combate ao vírus por três vias principais: a caneta, os atos administrativos indutores de confusão sem trégua; o exemplo, da recusa da máscara à atração por aglomerações; e a fala, a vasta coleção de disparates negacionistas”.

Sem o ponto e vírgula, seria mais difícil para o leitor discriminar os três elementos da enumeração; a utilidade do vetusto sinal de pontuação para a clareza do enunciado fala mais alto que seu cheiro de naftalina.

Nos demais casos, tornou-se comum que as funções do velho ponto e vírgula sejam desempenhadas no português brasileiro contemporâneo culto —mas não formal— por um destes sinais, conforme o caso: ponto, vírgula, dois pontos ou travessão.

O velho sinal de personalidade equívoca —representante de “uma pausa mais forte que a vírgula e menos que o ponto”, na definição do gramático Evanildo Bechara— foi ficando cada vez mais identificado com certo pedantismo.

Não acho que caiba lamentar. Há pouco tempo um desses trolls que ficam de tocaia nas esquinas do mundo digital me lançou a seguinte ofensa: “Diz que é escritor, mas nem sabe usar ponto e vírgula”.

Ri bastante, a princípio; depois fiquei pensativo. Como eu não tinha usado ponto e vírgula algum naquele momento, entendi que justamente em tal pecado devia residir a prova de que, apesar de me dizer escritor, não o sou. No panorama mental do sujeito, escritores usam ponto e vírgula; e ponto final.

Nesta coluna uso um punhado deles, é verdade; mas não acredito que conseguisse agradar ao exigente leitor, uma vez que o faço com claros propósitos de ilustração e sátira.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo