“Onde fica aquele lugar onde o que não deveria ‘acontecer a ninguém’ acontece todo dia?”, pergunta a filósofa Denise Ferreira no magistral ensaio “Ninguém: direito, racialidade e violência”.
Onde fica aquele lugar onde o pescoço de Floyd é esmagado por quase 10 minutos pelo joelho do policial Derek Chauvin? Onde fica aquele lugar onde 257 tiros são disparados por militares contra o carro de Evaldo dos Santos? Onde fica aquele lugar onde os militares que assassinaram Evaldo estão há dois anos sem serem julgados e, quando o forem, serão submetidos a um julgamento militar?
Onde fica aquele lugar onde a polícia matou, em 2019, seis vezes mais do que a dos EUA? A polícia no Brasil matou 6.357 pessoas (79% negros) em 2019 e a polícia nos EUA matou 982 em 2020, sendo a taxa de negros mortos duas vezes maior do que a de brancos nos EUA.
Onde fica o lugar onde já esquecemos o nome de Evaldo dos Santos, mas dedicamos incontáveis horas ao caso George Floyd como se fosse um espetáculo exótico que nunca acontece aqui? Onde fica aquela democracia racial onde se tem a ilusão de que polícia não escolhe cor porque seríamos todos miscigenados, mas pardos são mortos 3,15 vezes mais do que brancos?
Onde fica aquele lugar onde já esquecemos quem são Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique, os três meninos negros desaparecidos desde dezembro em Belford Roxo? Onde fica aquele lugar onde a nossa dor por mortes negras é seletiva?
Onde a vida de João Alberto, assassinado em um Carrefour em Porto Alegre, valeria R$ 1 milhão, o mesmo valor indenizado pela morte de um cachorro no Carrefour em Osasco em 2018, enquanto Mineápolis pagará R$ 150 milhões à família de Floyd? Onde fica aquele lugar em que percebemos que mesmo a maior quantia não curará a dor da perda?
O julgamento de Chauvin, em curso desde 25 de março, nos propicia uma radiografia do racismo na atuação policial, cuja origem —aqui e lá— inclui patrulhas para captura de pessoas escravizadas. A defesa de Chauvin normaliza a barbárie. “O uso da força não é atraente, mas é um componente necessário do policiamento”, disse Eric Nelson, advogado de defesa.
De maneira inédita, o chefe da polícia testemunhou contra Derek e a subcultura policial de morte. A defesa de Chauvin culpa Floyd pelo joelho que o esmagou. “Floyd morreu de uma arritmia cardíaca que ocorreu como resultado de hipertensão” e uso de drogas, afirmou Nelson. Defesa de Chauvin culpa os transeuntes não violentos que filmaram a ação, a quem chamou de “multidão hostil”.
O guarda da esquina mata porque quem está assentado no tribunal e no quartel o permite. Quando pensamos que Floyd e Evaldo são casos isolados, esquecemos que há instituições inteiras a permitir o genocídio; racismo ser estrutural não exime, pelo contrário, eleva a responsabilidade de quem o autoriza com sua caneta.
São os militares que defendem que 257 tiros não passam de “estrito cumprimento das leis”. É o Ministério Público do RJ que extinguiu, no último dia 10, o que ainda havia de controle externo da atividade policial, embora fosse ineficaz (Gaesp denunciou só 2,5% das mortes por intervenção policial entre 2015-2019).
O curta-metragem “Dois Estranhos” (2021, disponível na Netflix) mostra que quanto maior for a interação policial cotidiana, maiores são as chances de violência policial.
Onde fica o lugar onde Evaldo possa ir a um chá de bebê? Onde fica o lugar onde Lucas, Alexandre e Fernando ainda possam brincar no campo de futebol? Onde fica o lugar onde Floyd possa ir a uma loja? Poderia ser aqui, mas não é. Devemos, juntos, construí-lo.
Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo.
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