Numa obra pouco conhecida no Brasil, "Identidade e Violência", Amartya Sen, autor indiano laureado com o Prêmio Nobel de Economia, defende que temos múltiplas identidades e que a violência se fortalece quando consideramos que uma delas deveria ser hegemônica, com exclusão das demais.
Para ilustrar a tese, ele se define como hindu, bengali, filósofo amador, ateu, homem, feminista e escritor. De fato, quando aceitamos que apenas a religião ou a nacionalidade nos definem, torna-se tentador nos definirmos em oposição ao outro, também definido como alguém unidimensional.
A história é repleta de exemplos de eleição de uma identidade única, que nos opõe a um conjunto humano apresentado como o culpado dos males que nos afligem. São os uigures para os chineses, os rohingya para os birmaneses ou até os nordestinos ou as elites, considerados por alguns, no Brasil, como suspeitos desde o nascimento ou por um comportamento negativo a eles genericamente atribuído por políticos populistas.
Mas, mostra Amartya Sen, temos sim múltiplas identidades que podem viver em harmonia dentro de nós e em sua relação com os que são portadores de outras. Aliás, segundo Jacques Delors, equilibrar esses dois atributos é uma das tarefas mais importantes da educação, a de assegurar o que ele chama de "aprender a ser" e "aprender a viver juntos".
Caso contrário, reafirmamos a fragmentação política em que não é mais possível um projeto societário, pois meu grupo identitário se torna mais importante do que o todo. Mais grave ainda é quando defino o todo a partir da exclusão das identidades que não me fazem sentido, num processo de expurgação do que me incomoda ou que julgo pouco "higiênico" para integrar a sociedade.
Ao ler o mais recente livro de Lira Neto, "Arrancados da Terra", veio-me essa imagem, não como algo contemporâneo, mas como um fenômeno constante que já deveríamos ter superado. Ao escrever sobre a saga de judeus que, perseguidos pela Inquisição e por um sentimento de que a eles caberia a culpa por todo o sofrimento vivido pelos demais, perambulando por diferentes territórios —inclusive o Pernambuco de Nassau— antes de alcançar Nova York, ele mostra como o estigma associado à identidade étnica do grupo foi fonte de exclusão e privação de direitos.
Em continuarmos com essa visão, presente em múltiplas discriminações ainda presentes —e recentemente reforçadas no Brasil—, consolidamos também uma lógica de fragmentação, em que a culpabilização do outro substitui-se ao enfrentamento dos problemas que verdadeiramente nos afligem e nos impedem de avançar como país.
Texto de Claudia Costin, na Folha de São Paulo.
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