Marc Ferro, historiador francês que morreu nesta quarta-feira, aos 96 anos, vítima da Covid-19, em Paris, é conhecido no Brasil por seus trabalhos sobre a Revolução Russa e as relações entre a história e o cinema. Mas se voltou ainda a inúmeros temas. Em comum, a reflexão sobre a escrita da história e seus usos e abusos na legitimação de ações no presente.
Nascido em 1924, ele perdeu o pai aos cinco anos. Sua mãe, modista de uma casa de alta costura, foi uma influência fundamental em sua vida. Ela tinha um sobrenome judeu, mas não tinha consciência disso. A ocupação nazista os tornou judeus.
Ferro fugiu de Paris graças ao conselho de seu professor de filosofia, Merleau-Ponty. Em 1944, participou da resistência, mas na volta, não reencontrou sua mãe, que fora executada em Auschwitz.
Vivenciou esses e outros acontecimentos que moldaram sua visão sobre a história, em que pesquisa e erudição, as experiências de vida, a intuição e a coragem de contrariar o estabelecido permitiram percepções iluminadoras e engajadas, até o fim de sua vida.
Prova disso é a relação íntima que estabeleceu com as tecnologias audiovisuais. Não foram apenas objeto de estudo, ou de difusão do conhecimento.
Especialista e orientador de estudos sobre a Rússia, aproveitou o surgimento das antenas parabólicas e conseguiu, de seu escritório na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, instalar uma televisão para acompanharem a difusão das mudanças que ocorriam com a Perestroika. À sua maneira, em 1985, antecipava a conexão direta em tempo real da internet.
A vasta obra, que se inicia nos anos 1970, abrange a história da Rússia, da França, das colonizações, a Segunda Guerra. Essa bagagem de pesquisas acompanha e se enriquece no seminário sobre cinema e história, com temáticas trazidas por estudantes de vários países.
A partir do embate constante entre textos e imagens —usados em seus livros com a mesma legitimidade—escreve sobre as "Falsificações e Tabus da História" e, em 2015, "A Cegueira"—, muito oportuno, porque estuda o motivo de "nos recusarmos a ver a realidade”.
Ao se voltar de forma pioneira para o estudo das imagens audiovisuais, vistas com desconfiança e desprezo pelos historiadores até então, podemos entender sua postura em relação a tudo o que escreveu e aos vários filmes e programas de televisão que realizou ao longo de sua carreira.
Em 1964, enquanto redigia sua tese de doutorado sobre a Revolução Russa, participou da realização de um documentário sobre a Primeira Guerra. Diante das imagens dos arquivos, observou que traziam informações diferentes daquelas que a história escrita consagrara.
Ora, há uma história escrita pelas imagens que é diferente da história dos livros. Desafiar essa certeza, esse paradigma dos historiadores rendeu muitas críticas a ele. Afinal, o cinema não é sério como a história; ele manipula.
Ora, a escrita da história não manipula? O cinema mandava essa questão de volta para a história. O cinema escreve, sim, a história. “Documentário ou ficção é história.”
Com esse pensamento, Ferro abriu aos historiadores esse vasto campo de estudos que se espalhou pelo mundo, incluindo o Brasil, onde Ferro se apresentou várias vezes, numa delas conforme sua memória, teve o seu maior público, mil historiadores.
De seus ex-alunos no Brasil, há o livro "Cinematógrafo", um olhar sobre a história.
A constatação crítica sobre a escrita da história já vinha de sua experiência como professor em Orâ, na Argélia, entre 1948 a 1956. A história do colonizador que ele trazia como verdadeira e universal não era aceita pelo colonizado. “Não é essa a nossa história.”
Ele passa a aprender com os alunos outras histórias e paradigmas. Descoloniza sua visão de mundo, assim como tantos outros que passaram pela experiência colonial. Como Fernand Braudel que o leva para os Annales, a revista que desde 1929 vinha revolucionando os estudos de história.
Em sua tese de doutorado, Ferro pôs em questão dogmas sobre a Revolução Russa. Uma revolução feita pelos proletários conforme dizem os livros, o poder? Não era o que diziam as fontes que pesquisara, as imagens fotográficas e fílmicas tomadas da própria revolução.
Foram os soldados que voltavam da guerra, as mulheres e os camponeses que fizeram a Revolução Russa. Desafiava, assim, a imagem e a história que o Partido Comunista construíra.
Novas visões sobre a história da Segunda Guerra Mundial se estabeleceriam de forma profunda e partilhada com o público, durante 12 anos —entre os anos de 1989 e 2001— no programa semanal Histoire Parallèle.
Após a queda do Muro de Berlim, no prenúncio da União Europeia, no canal de televisão franco-alemão La Sept, conhecido posteriormente como Arte, selando a amizade dos antigos países rivais, Marc Ferro e um segundo historiador mostravam e comentavam os cinejornais produzidos em seus países durante a guerra.
Como as imagens construíam a guerra? Como as populações a deviam vivenciar? O que essas imagens não mostravam? Exercício de compreensão histórica e compaixão. Um humanismo que marcou as inquietações e contribuições de Marc Ferro, e que nosso tempo parece ter perdido.
Texto de Sheila Schvarzman, na Folha de São Paulo. A autora é doutora em História pela Unicamp, e foi aluna de seminários com Marc Ferro.
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