quarta-feira, 7 de abril de 2021

Ainda não me convenci de que existam generais democratas no Brasil


Conheci um bom pedaço da ditadura (já estava grandinho no governo Geisel).

Nem vou falar dos horrores, das violências, dos desastres e das injustiças do período. Trato de uma coisa menor, mas que me deixa bem irritado ao ver repetida agora: o puxa-saquismo dos civis em relação aos militares.

Apareceu por toda parte nestes dias. “O general Fulano se recusa a participar de um golpe”: parabéns ao general Fulano. “Como nunca, os militares estão conscientes de suas funções constitucionais.” Que bom. Ainda bem. “O comandante Beltrano reafirma seu compromisso com a ordem vigente.” Nossa. Muito obrigado.

Quando chegamos a esse ponto, ponho as mãos na cabeça. É sinal de que nós, os civis, vamos deixando de ser sujeitos do processo político —e que depende deles, militares, a decisão de aderir ou rejeitar um projeto golpista.

“Não há clima para uma intervenção”, diz o general A; mas e se houvesse? Aí, imagino que não haveria declaração nenhuma —os tanques já estariam nas ruas. Parece evidente que, se não todos, muitos militares trabalham com essa hipótese. “Se tiver que haver, haverá”, disse o general Mourão em 2017.

Em 2018, o general Villas-Boas postou seu famoso tuíte alertando, por assim dizer, contra uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal, o STF, em favor de Lula, falando de “repúdio à impunidade” e de um Exército “atento às suas missões institucionais”.

Dois anos depois, o general Augusto Heleno esbravejava contra outra decisão do STF, que possibilitava que Bolsonaro tivesse seu celular apreendido para investigações: haveria “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Ainda em 2020, o general Luiz Eduardo Ramos descartava um movimento militar: declarou que os comandantes militares achavam “ultrajante” essa hipótese. Mas logo acrescentou: “Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”.

Não são militares da ativa, certo. Pertencem à cúpula do bolsonarismo —ironicamente, à vertente “moderada” de um “freak show” de milicianos, malucos da conspiração, videntes e incendiários.

Não quero cometer injustiças com os três militares demitidos por Bolsonaro. Tudo indica que não quiseram aderir à demência presidencial.

Mas até hoje não tive notícia de chefe militar brasileiro visceralmente democrático. Só mudarei de ideia quando algum criticar o golpe de 1964.

Ao contrário, todo ano, no dia 31 de março, vemos pronunciamentos celebrando o movimento. Por quê? Afinal, não é feriado nacional, não é data religiosa, não é Dia Internacional da Mulher, Dia da Consciência Negra, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em 1964, os militares puseram tanques nas ruas sem que nenhum poder constitucional requisitasse a sua intervenção. Diante do fato consumado, a maioria do Congresso se curvou. O nome disso é golpe.

Passaram-se mais de 50 anos, e não sei de nenhum militar que tenha feito a autocrítica dessa violência, ponto de partida para todas aquelas que se seguiram.

É o que disse Janio de Freitas, na Folha de domingo passado: “Enquanto faltar a coragem moral de reconhecer que antecessores seus cometeram crimes bárbaros e estrangularam as liberdades e demais direitos universais, os militares não estarão a serviço legítimo da sua função de Estado”.

Mas o que mais se vê é um movimento de reverência aos militares supostamente democratas. É a mesma auto-hipnose de quem repete que “as instituições estão sólidas”.

Estivessem sólidas, não estaríamos dando graças a Deus pelo fato de haver militares sem disposição para dar o golpe. Estivessem sólidas, não estariam parados os processos investigando o golpismo do presidente. Um dia acordaremos percebendo que as instituições que “eram sólidas” deixaram de ser.

Muita coisa diferencia o momento atual do que acontecia em 1964. Naquela época, o golpe não foi feito em favor de um projeto individual. As Forças Armadas, como um todo, tomaram o poder; não é a mesma coisa do que entregar o comando a um psicopata.

Além disso, não estamos vivendo um momento de agitação social, de “caos”, de “baderna”, como os militares gostavam de classificar os movimentos de esquerda.

Esses dois fatores correspondem, creio, à “falta de clima” para uma intervenção agora. Mas nada me convence de que os militares descartam a hipótese. Provavelmente, quem os elogia agora também irá elogiá-los nessa ocasião.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Destaque do blogueiro. 

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