quinta-feira, 8 de abril de 2021

Bosi fez do acordo entre o verbo e a carne o norte de sua existência


Numa mesa redonda sobre a obra de Machado de Assis, realizada em 1980, e com nomes de proa, como Antonio Callado e Roberto Schwarz, Alfredo Bosi tomou a palavra e, em vez de expor erudição intimidadora ou elaborar teorias inteligentes, propôs uma pergunta que condensa a singularidade de seu olhar e a potência de sua contribuição à cultura brasileira. “É uma curiosidade minha saber como é que vocês responderam vitalmente a Machado.”

Autorretrato involuntário. Para Alfredo Bosi, cultura nunca foi sinônimo de acúmulo rigoroso de dados dissociado da vida. Pelo contrário, segundo ele, o conhecimento era parte de uma ética que vinculava intrinsecamente a formação à roda da biblioteca com o saber forjado nas experiências do cotidiano.

Circula no YouTube uma notável conferência do crítico, "Cultura ou Culturas Brasileiras?", de 2015. A fim de explicar o conceito de cultura, além de recorrer às noções grega e romana, ele lançou mão de sua experiência em Florença, nos anos de 1961 e 1962.

Bolsista do governo italiano, o jovem Bosi converteu seus contratempos diários numa fascinante reflexão acerca da ambiguidade do conceito latino –cultura implica tanto trabalhar a terra com as mãos quanto moldar o espírito.

Ambiguidade tornada dilema que ainda hoje aprisiona a civilização brasileira, como descortinado no fundamental “Dialética da Colonização”, de 1992. Polos opostos se confrontam há séculos –de um lado, se “aproxima cultura e culto, utopia e tradição”. De outro, tendência dominante, se “amarra firmemente a escrita à eficiência da máquina econômica articulando cultura e colo”. A defesa incondicional da vida pouco vale nos manifestos de banqueiros preocupados com a economia e nada pesa na desfaçatez de políticos e empresários que desejam legalizar o contrabando vergonhoso de vacinas.

Doutor em literatura italiana, com tese dedicada ao “Itinerário da Narrativa Pirandelliana”, defendida em 1964, e livre-docente na mesma disciplina, com o trabalho “Mito e Poesia em Leopardi”, de 1970, Bosi dominava como poucos a tradição da literatura clássica, numa das mais completas vocações de comparatista da universidade brasileira.

Em 1970, ele realizou uma mudança importante. Passou a ensinar literatura brasileira, se tornando professor titular em 1985 e professor emérito em 2009.

Não se pense, contudo, que este foi um movimento inesperado. Fiel ao compromisso com o próprio tempo, Bosi sempre se interessou pela literatura nacional. Em 1962 organizou “José Bonifácio, o Moço – Poesias”. Em 1966, publicou sua primeira obra de referência na disciplina, “O Pré-Modernismo”, estudo incontornável do período imediatamente anterior à eclosão da Semana de Arte Moderna em 1922.

Na verdade, o rito de passagem foi celebrado com um livro-monumento, saído no mesmo ano de 1970 –“História Concisa da Literatura Brasileira”, título obrigatório e incomum best-seller acadêmico.

Em primeiro lugar, Bosi aceitou o desafio de analisar a produção contemporânea, recusando o abrigo cômodo de lidar somente com o cânone. Em novas edições, acrescentou uma seção sobre a ficção produzida entre os anos 1970 e 1990. De igual modo, estudou a poesia concreta, poetas posteriores e ainda destacou, tópico inédito em histórias literárias, as traduções de poesia.

Outro gesto que não se encontra em títulos do gênero –Bosi concluiu o livro com uma seção em que sublinhou a importância de outros críticos, seus pares e, por vezes, vozes divergentes. Generosidade intelectual que reitera o elo entre vida e obra.

As últimas páginas homenageiam um austríaco naturalizado brasileiro, conferindo pleno sentido a uma das dedicatórias do livro. “Para Otto Maria Carpeaux, mestre de cultura e de vida.” Eis aí o acordo entre verbo e carne, biblioteca e pólis –norte da existência de Alfredo Bosi.

Por fim, publicar “História Concisa da Literatura Brasileira” foi um relevante ato de resistência nem sempre bem compreendido. Leiamos a nota adicionada em 1979 –“Quanto à crítica produzida nos anos de 1970, registre-se a tendência formalista e estruturalista”. Portanto, escrever uma história da literatura em 1970, momento mais sanguinário da ditadura militar durante o governo do general Médici, foi uma atitude ousada –dentro e fora da universidade.

Resistir foi o verbo central na vida e na obra do autor de “Literatura e Resistência”, de 2002. No Brasil de hoje, em plena incapacidade de um governo negacionista de enfrentar a crise da Covid-19, resistir também é viver com coerência e dignidade. Lição definitiva, que afirma a atualidade perene do pensamento-ação de Alfredo Bosi.


O texto é de João Cezar de Castro Rocha, professor da UERJ, publicado na Folha de São Paulo

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