Viet Thanh Nguyen nasceu no Vietnã. Tinha quatro anos quando, na véspera das tropas comunistas tomarem Saigon, em 1975, sua família fugiu para os Estados Unidos. Formou-se em Berkeley, casou com uma artista vietnamita, tem dois filhos e ganha a vida como professor universitário.
Estreou tarde na arte, aos 44 anos, ao publicar “O Simpatizante”, em 2015. Deu-se o inesperado: o romance vendeu 1 milhão de exemplares; levou o Pulitzer e uma penca de prêmios; ganhou elogios extáticos; abiscoitou bolsas, cátedras, colunas —lançado no Brasil pela Alfaguara, deu-se o esperado: ninguém o leu.
“O Simpatizante” é pertinente, inventivo e, o mais surpreendente, de rolar de rir. Começa com a queda de Saigon, onde o narrador tenta sobreviver ao barata-voa. Homem da CIA, ele é ajudante de ordens de um figurão do regime, um generaleco ensebado que lembra Augusto Heleno.
Só que não. Na real, é um espião infiltrado nas fileiras pró-ianques, um vermelho disfarçado de colabô que, na hora do bem-bom apoteótico, recebe a ordem de ir com os podrões para os Estados Unidos. Ali, vigiará Augusto Heleno, que treina uma milícia de palermas para retomar o Vietnã.
O enredo rocambolesco faz com que os personagens virem o contrário do que eram no início. Mas a constelação de temas se mantém: o refugiado como estrela-guia da sociedade atual; o racismo que o torna invisível; a humilhação perpétua como signo do novo tempo —como a do narrador, um vitorioso clandestino que se enterra na vala dos vencidos.
Com tudo isso, “O Simpatizante” esmerilha o “lugar de fala”, satirizando-o e o desmistificando. Seu narrador, por ser vietnamita e americano, estar lá e cá, separa a realidade da representação e finca a faca ali onde a ideologia pulsa —na má consciência da arte para massas.
Na cena mais bufa do romance, ele dá consultoria a uma superprodução americana sobre a guerra no Vietnã. Constata que os vietnamitas não têm direito a lugar nenhum, a uma reles fala. Amarelos em andrajos, suados e imundos, eles são estripados por americanos trágicos.
Fica claro que “O Simpatizante” não se refere a um hiperblockbuster do tipo “Rambo” —e sim a uma obra-prima do naipe de “Apocalypse Now”, com seus ecos de Conrad e Eliot.
O Vietnã de Nguyen não foi uma tragédia americana que enlouqueceu o coronel Kurtz de Marlon Brando. Foi uma épica nacional comandada e vencida por Ho Chi Minh —que, como repete o narrador, ensinou que nada é mais precioso que a liberdade e a independência.
Saiu há pouco nos Estados Unidos o esperado segundo romance de Nguyen, “The Committed”. Surpresa das surpresas, o protagonista comprometido de seu título é o mesmo de “O Simpatizante”, que agora quer ser burguês. Para fazer a acumulação primitiva de capital, trafica drogas.
Ele passou por um campo de reeducação no Vietnã, onde torturadores arrebentaram-lhe a alma, e está em, ulalá, Paris. Fala a língua por ser o filho bastardo de um padre católico com uma camponesa de 13 anos —seu apelido na bandidagem é Crazy Bastard.
Em busca de um nicho no mercado de haxixe e coca, ceva beletristas como o Maoísta PhD (inspirado em Alain Badiou) e BFD (um misto de BHL, o picareta Bernard-Henri Lévy, e DSK, o estuprador Dominique Strauss-Kahn). O escárnio é rombudo.
Rombudo em excesso, se bem que sempre hilário. A guerra entre os rufiões do norte da África e os do sul da Ásia, por exemplo, é uma pândega de porres e bordoadas. Como no romance anterior, contudo, “The Committed” não perde a perspectiva pós-colonial.
Ou seja, para franceses de bom berço, argelinos e líbios formam um bafafá indistinto, árabe e pardo. E a gangue multiasiática de Crazy Bastard não passa de sete anões de olho puxado, vendendo miojo por lámen no Delícias da Ásia, o pior restaurante oriental de Paris.
À medida que a violência incrementa a trama, crescem também as elucubrações filosóficas e políticas —o leão de chácara de um bordel lê Voltaire enquanto entretém a freguesia.
Doutas, as citações grifam a condição colonial: Fanon, Aimé Césaire, o Sartre de “o europeu só se tornou homem quando criou escravos e monstros”. O colonizado, pois, pode ser tanto Ho Chi Minh como Crazy Bastard.
A violência que impera não visa a libertação dos oprimidos, ao contrário: eles guerreiam entre si. Os tiroteios do capitalismo gangsterizado se sobrepõem à crítica, e “The Committed” se torna então um novo “Apocalypse Now” —com Bruce Lee de astro e Tarantino na direção.
Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo.
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