segunda-feira, 6 de julho de 2020

Leblonfobia

[Este texto contém ironias sinceras]. Nada contra. Eu até tenho amigos que moram no Leblon. No Leblon literal e no Leblon figurado. No Leblon literal: aquele metro quadrado mais caro do Brasil. No Leblon figurado: aquele que encarna o país mítico pintado por Manoel Carlos onde toda uma nação cabe no núcleo rico da novela e a favela é um adendo, um quartinho de empregada, quando algo é. Este Leblon construído sobre os escombros do quilombo que ali funcionou no século 19 na Chácara das Camélias, na época em que alguns na elite se dispunham à causa abolicionista.
Desculpe, já comecei este texto irredutível. Já meti um “quilombo” logo no primeiro parágrafo e isso há de ofender a parcela incauta dos leitores. Daqui em diante, neste texto, não verei cor. No lugar, apenas verei indivíduos, como rogou Magnoli nesta Folha. Deixe-me tentar.
No primeiro dia de liberação dos bares no Rio de Janeiro, indivíduos, que por mero acaso são brancos, desafiaram as medidas de saúde na pandemia, aglomerando-se; na Barra da Tijuca, integrantes do mesmo grupo não racial gritaram aos fiscais, em tom desafiador que só a branquitude permite: “Eu não vou embora”.
E se este grito tivesse ocorrido num baile funk, digamos em Paraisópolis, por indivíduos que por acaso são negros?
Uma hipótese: teriam sido pisoteados. Raça é como as bruxas: pode não crer nela, mas que ela existe, existe. Enfrentar a lei é privilégio branco; menosprezar pandemia também. Paraisópolis, aliás, está se saindo melhor no combate à pandemia do que a média municipal de SP, dada a mobilização social, segundo Instituto Pólis.
Mais que um bairro, Leblon é um estado de espírito. Um jeito de ver o mundo. Um lugar de fala, se preferir. A partir deste lugar, o inferno é se preocupar com o futuro dos outros.
No Leblon, crise econômica na pandemia se resolve com redução de impostos e desoneração da folha de pagamento. Greve dos entregadores de aplicativo se resolve com mais gorjeta e menos direitos. Do andar de cima, nos alerta Pedro de Souza em “Uma História da Desigualdade”, parece tudo estável, confortavelmente estável e desigual. Não é o que o futuro do país requer. Estamos todos no mesmo barco da pandemia, mas este barco — afundando como o Titanic — é segregado por classes (que, por acaso, têm cor).
No Leblon, literal e figurado, pouco se fala que o futuro do trabalho no século 21 requer, como aponta Laura Carvalho em seu novo livro “Curto-circuito”, um sistema de proteção social universal, combinando seguridade social contributiva e renda básica.
No Leblon, pouco se fala que greve dos entregadores de aplicativo não é por centavos de gorjeta, é por direitos.
No Leblon, literal e figurado, hão de pensar que auxílio emergencial é apenas um voucher, uma esmola vergonhosamente estendida por apenas mais dois meses e não até dezembro deste ano, como recomendado.
Voltemos às camélias, símbolo da causa abolicionista, produzidas no quilombo do Leblon. Escreveu Eduardo Silva, autor de “As camélias do Leblon e a abolição da escravatura”: “A camélia não era uma flor dessas comuns, naturais da terra e encontradiças soltas na natureza. Era, pelo contrário, uma flor especial, estrangeira, cheia de melindres com o sol, que requeria know-how, ambiente, mão de obra, relações de produção, técnicas de cultivo e cuidados muitíssimo especiais.”
Nossa democracia, ironicamente, é menos parecida com o Leblon, e mais parecida com as camélias. Requer cuidado senão morre.

Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

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