A homenagem a Teresa de Benguela decorre da Lei 12.987 de 2014, sancionada no mandato da presidenta Dilma Rousseff. O legado da rainha é cada vez mais exaltado e presente em nossa sociedade. Como canta o samba da Barroca Zona Sul, campeã do grupo de acesso de 2020 no Carnaval paulista: “O nosso canto não é apenas um lamento/ A coragem vem da alma de quem ergueu o parlamento/ Do castigo na senzala à miséria da favela/ O povo não se cala, oh Tereza de Benguela/ Vem plantar a paz por essa terra/ A emoção que se liberta/ E a pele negra faz a gente refletir/ Nossa força, nossa luta/ De tantas Terezas por aí”.
Nesse dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha gostaria de trazer algumas reflexões para vocês. Historicamente, nascer negra no Brasil é nascer marcada. “Nós carregamos a marca”, afirmou Luiza Bairros, grande intelectual negra brasileira, cuja morte completou quatro saudosos anos neste último dia 12 de julho.
A marca é trazida também na canção “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, verdadeiro hino das mulheres negras brasileiras, quando canta: “Mas é preciso ter força/ É preciso ter raça/ É preciso ter gana sempre/ Quem traz no corpo a marca/ Maria, Maria/ Mistura a dor e a alegria”.
Tal marca pode ser mais presente a depender do quão indisfarçável é a negritude, como também de quantas camadas se reveste de negro.
Outro dia estava em uma live com Sidnei Nogueira, babalorixá e doutor em semiótica pela USP, quando ele me contou sobre as camadas. O sacerdote observou que, quanto mais camadas de negro você assume, mais perseguido você será. Uma mulher negra, de candomblé com as contas à mostra, com seus cabelos assumidos, sua postura altiva de queixo erguido e sem culpa se reveste de camadas suficientes para despertar incômodos onde quer que passe. Porém há um outro lado: desperta também inspiração e desengasga o grito de axé preso pelas máscaras de silêncio do colonialismo.
A transformação está em curso, fruto da luta histórica de mulheres negras de Benguela a Bairros, na incessante e organizada luta pela manutenção da comunidade negra, apesar de tantos pesares nesse país colonial. Muitas de nossas crianças negras não passam químicos no cabelo, não se submetem a rituais de queima do couro cabeludo. Muitas se veem representadas em algum espaço, muitas não lavarão privadas de escritórios ou cuidarão dessas crianças brancas enquanto as suas ficam sem cuidado.
É sabido, contudo, que há muito mais a ser denunciado e transformado. Não é possível vivermos num país que mantém os maiores índices do mundo de feminicídio dessas mulheres; num país onde o abandono paterno seja tão comum e naturalizado, ao passo que essas mulheres morrem aos montes vítimas da criminalização de seus corpos em abortos femininos em todo o país. É necessário discutir abuso sexual infantil, uma prática muito mais comum do que se imagina, como também visibilizar os “filhos do feminicídio”, as crianças que ficam órfãs de suas mães assassinadas pelo homem que vai preso ou vai embora.
É necessário discutir a explosão carcerária feminina nos últimos anos pela falida e criminosa política de drogas desenvolvida no país. É necessário visibilizar os filhos do cárcere, crianças que perdem suas mães para julgamentos draconianos e não têm qualquer encaminhamento do Estado, entre outros temas urgentes e necessários.
É necessário discutir políticas públicas de habitação, saúde, educação para essas mulheres, programas de renda que quando são a elas destinados beneficiam toda a comunidade. São temas inesgotáveis para um artigo, o que mostra que estamos num caminho, mas há muito ainda a ser transformado.
Nesse dia de reflexão, denúncia e celebração da resistência da mulher negra no continente, termino o texto saudando as mulheres mais velhas, mulheres de minha geração e mulheres mais jovens por essa excepcional capacidade revolucionária da mulher negra, a qual mesmo sob tantas adversidades segue propondo um novo modelo de sociedade mais justa e plural.
Texto de Djamila Ribeiro, na Folha de São Paulo.
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