Dia desses, depois de sentar para almoçar às 17h na minha cela doméstica (estamos todos em prisão domiciliar), meio sem noção da hora (pois qualquer hora é hora de comer, de dormir, de varrer, menos de sair), ligo a TV.
Tentando relaxar diante da tela, coisa que em outra época seria incomum naquele horário, comecei a ver a segunda temporada da série brasileira “Coisa Mais Linda”, na Netflix.
Uma injeção de bossa-nova e de Rio de Janeiro na virada dos anos 1960, coquetel na veia capaz de acalmar até uma manada furiosa em disparada.
E aí aparece o Copacabana Palace, com a cara que tem hoje (passou por uma reforma há poucos anos), mas maquiado como se estivesse há 60 anos, reluzindo no esplendor nos tempos em que o Rio ainda por cima bebia as últimas glórias de ser a capital federal.
A imagem do hotel, inclusive de ambientes internos que já tive a sorte de conhecer, evocou-me aquilo que todos os hotéis têm em essência, sem precisar ser necessariamente um hotel icônico ou de luxo.
Trata-se da noção quase mágica de estar num universo onde podemos prescindir das preocupações comezinhas. Onde podemos ter a sensação de viver e agir impunemente. Onde quase tudo se resolve sem precisar que sejamos nós a resolver.
Num momento em que a maioria de nós (falo da classe média que compõe o grosso dos leitores aqui) tem que enfrentar as vicissitudes do cotidiano num nível de detalhes a que não estávamos habituados, acho que nunca foi tão verdadeira uma afirmação que li certa vez, numa entrevista de Rogerio Fasano, o restaurateur transmutado também em hoteleiro.
Dizia ele algo como: “Se uma pessoa vai a um hotel e fica feliz porque ali se sente em casa, então alguma coisa este hotel tem de errado”.
De fato, com ou sem pandemia, um hotel não é a reprodução da própria casa —no mínimo porque cada hóspede tem uma casa, uma família, um estilo de vida, impossível de ser reproduzido para todos.
O denominador comum a todos os hóspedes é o desejo de encontrar conforto e esta sensação que chamei de impunidade diante das pequenas tarefas do cotidiano.
Claro, quanto melhor for o hotel e o serviço, mais realizado será este modesto sonho. Mas nem é preciso tanto.
De muitas experiências que já tive em hotéis, me lembro com especial carinho de um pequeno estabelecimento em Paris: o hotel Fondary, na rua de mesmo nome.
Eu o frequentei durante um bom tempo, durante os cinco anos em que, depois de período no Japão, minha amiga Mari Hirata esteve uma temporada de volta à França (onde morara antes).
Nessa época, a cada vez que ia a Paris —ou mesmo a outros países europeus— separava ao menos um ou dois dias para encontrá-la. Apesar de seus convites para que ficasse em sua casa (onde vivia com o marido e dois filhos), sentia-me mais à vontade tendo meu próprio canto, um hotel.
Assim encontrei o Fondary, a poucos quarteirões de onde Mari morava, no 15º distrito. Sendo uma região pouco turística, o hotel era barato e fazia parte do guia de hotéis de charme de Paris (onde fiz minha procura), provavelmente por seu ambiente acolhedor que incluía um pátio onde eu podia tomar café ou passar horas trabalhando.
Virei um habitué. Nos poucos dias de cada estadia, passava a maior parte do tempo cozinhando na casa da Mari, ou fazendo compras em mercado, ou indo a restaurantes, ou encontrando outros conhecidos. A volta a meu quartel-general, com cama arrumada e desjejum me esperando manhã seguinte, eram o luxo simples de que eu precisava.
Em condições normais, sem uma pandemia catastrófica, as pessoas viajam em busca de experiências diferentes daquelas do cotidiano. O hotel tem que ter esta cabeça: a de propiciar este intervalo na normalidade do hóspede, poupá-lo de certos afazeres.
Se puder enchê-lo de mimos e luxos, ainda melhor. Mas, pressionados pelo peso do cotidiano que nos sufoca, estamos menos exigentes: uma viagem será ótima se proporcionar novas experiências de paisagens, gastronomia, cenários urbanos.
Mas suspeito que, hoje, o simples estar num hotel, sem nem sair para conhecer o destino, promete ser uma experiência emocionante. Um alívio.
Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo.
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