Tem sucesso, na Disneylândia liberal, a tese de que desigualdades de renda não são tão importantes assim. Se todo mundo conta com um padrão de vida razoável, que diferença faz se 100 mil pessoas concentram metade da riqueza de um país?
Tudo, naturalmente, é uma questão de grau. Pessoalmente, eu não saberia o que fazer com um iate de 300 pés de comprimento e acharia complicado morar num castelo de 50 quartos na Normandia. Afirmo, ademais, não ter inveja de quem se compraz nesse tipo de coisa.
Podemos ficar chocados ou não com esses extremos de consumo. Só que o problema da desigualdade é outro.
O que se vê, não só no Brasil, é que o agravamento das distâncias sociais acaba destruindo noções muito importantes para qualquer sociedade civilizada.
Penso em noções como república, democracia, lei, nação e cidadania. Quem não ignora que existe uma lei para os pobres e outra para os ricos?
A coisa piora quando há hospitais para pobres e hospitais para ricos —o que acontece no Brasil, mas não em muitos países avançados do mundo. Quando pegou a Covid-19, o primeiro-ministro do Reino Unido se tratou num hospital público.
Nem o mais radical esquerdista teria coragem de fazer o mesmo no Brasil; e ai de quem defender que, numa emergência médica, os leitos do Einstein ou do Sírio-Libanês deveriam ser franqueados a todos que precisarem, por ordem de chegada.
O resultado é que, se morrem 50 mil ou 100 mil pessoas numa pandemia, isso acaba sendo visto como “natural” num país em que pobre morre fácil: morre de bala perdida, de câncer que não foi diagnosticado a tempo, de inundação, de qualquer coisa.
Não é outro o sentido do discurso bolsonarista de que prevenção, quarentena, máscara e testes são coisas com que não devemos nos preocupar. Tanto quanto os índios, os negros, os pobres e os favelados vão morrer de uma coisa ou de outra.
Quanto maior for o número, melhor. Imagina-se um país mais unificado, uma nação mais “unida” e vestida de verde e amarelo, sem tantos pobres e minorias para atrapalhar.
Não é por acaso, penso eu, que o bolsonarismo precisa insistir tanto na “brasilidade” e num nacionalismo delirante, na verdade dirigido por controle remoto a partir de Trump e seus associados.
Vivemos todos num país em que não se tem quase nunca a sensação de partilhar uma experiência comum. Quem anda de carro não sabe o que é andar de trem, quem estudou numa escola particular não sabe o que é uma escola pública
São vivências diferentes, geografias diferentes, destinos diferentes, coexistindo num país que ainda é imaginariamente o mesmo. A ideia do bolsonarismo é se apropriar do país imaginário, expulsando o que não combina com esse ideal.
Eliminem-se os comunistas, os índios, os quilombolas, os maconheiros, os favelados, os homossexuais, os negros; de modo geral, todos aqueles que tenham reivindicações relativas às suas “diferenças”.
Pois, na nação de Bolsonaro, todos são “iguais”: usam a camisa verde e amarela, consideram-se “cidadãos de bem”, querem armas e desregulamentação econômica.
A um passo do genocídio, fortalece-se a invenção nacionaloide. Está aí para esconder, ao mesmo tempo em que intensifica, uma divisão brutal, em que os de cima ignoram o que acontece com os de baixo.
Quando uma dondoca diz que os moradores de rua precisam estar conscientes “de suas responsabilidades”, estamos atingindo um grau de cegueira e alienação próximos aos de Maria Antonieta.
Não digo que estejamos próximos de uma Revolução Francesa. Às vezes o desfecho é inverso: o derramamento de sangue se faz contra os pobres, as minorias, os que não entram na pintura.
O filho de uma empregada morre depois de cair do nono andar do prédio da patroa. Saem comentários no Facebook: patroa não tem de cuidar do filho da empregada, a empregada está sendo paga para trabalhar, casa de patroa não é creche.
Curioso que, assim como no caso dos “mendigos irresponsáveis”, o discurso desumano assume um tom burocrático-legalista. Todos têm de saber quais são seus direitos e deveres, e “faltou responsabilidade” à doméstica, não à patroa, claro.
É a teoria dos que se consideram “cidadãos de bem”, adeptos da “meritocracia”, e cegos para a criminalidade e o privilégio que os beneficiam.
Miguel, o menino de cinco anos que era filho da empregada, não fazia parte desse Brasil delirante que se constrói a cada dia. Não fazia parte da pintura; uma voz, antiga de séculos, mas fortalecida hoje, mandou que caísse fora.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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