Sérgio Ricardo era solidariedade infinita. Sua obra na música, no cinema, no teatro, na pintura tem origem nesse olhar verdadeiramente voltado para as outras pessoas. "Eu faço isso por uma questão uterina, se eu tivesse útero. Porque o meu negócio é o meu ser com o meu semelhante. Não é uma oportunidade que eu esteja querendo desfrutar. Isso aí é uma coisa minha, amanhã quando eu subir no paraíso, eu vou ficar falando daquele mendigo pobre coitado, ninguém deu bola pra ele, coisas assim”, me disse o Sérgio na entrevista para o documentário “Uma Noite em 67”.
A obra de Sérgio permanece. Os versos "Tristeza mora na favela/ Às vezes ela sai por aí/ Felicidade então/ Que era saudade sorri/ Brinca um pouquinho/ Enquanto a tristeza não vem", da música "Enquanto a Tristeza Não Vem” continuam ecoando e embalando de lirismo a dura realidade brasileira. Ou como diz o verso de “Esse Mundo é Meu”: “Mas acorrentado ninguém pode amar”.
Junto com Geraldo Vandré e Carlos Lyra, Sérgio trouxe a bossa nova para olhar de perto a realidade brasileira. Suas músicas têm harmonias belíssimas, mas não falam de sol, sal ou mar.
A cada enchente, lembramos de “Zelão”. “Todo morro entendeu quando o Zelão chorou/ Ninguém riu, ninguém brincou, e era Carnaval/ No fogo de um barracão/ Só se cozinha ilusão/ Restos que a feira deixou/ E ainda é pouco só/ Mas assim mesmo o Zelão/ Dizia sempre a sorrir/ Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar”.
Em sua entrevista para "Uma Noite em 67", Chico Buarque disse: “Quando apareceu a bossa nova, eu reneguei o que havia antes. E o Sérgio Ricardo além de fazer parte do movimento, fazia aquelas músicas um pouco modernistas. Músicas sem rima. Eu adorava aquilo. Além disso, ele foi um dos primeiros a começar a fazer músicas de movimento social como ‘Zelão’. ‘Pedro Pedreiro’ tem um pouquinho a ver com isso. Tudo tem a ver com o Sérgio Ricardo nessa minha fase primeira certamente."
Sérgio deixou uma obra musical imensa que precisa ser revisitada. A trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é uma obra-prima. Vale a pena procurar o show “O Cinema na Música de Sérgio Ricardo”, produzido pelo Canal Brasil, que está disponível no YouTube.
Seus filmes também traziam essa mistura de poesia e solidariedade. Dirigiu “O Menino da Calça Branca”, jogou uma luz incandescente nas carreiras de Geraldo Azevedo e Alceu Valença com o ousado e criativo “A Noite do Espantalho”. Recentemente, com produção de Cavi Borges, lançou o filme “Bandeira de Retalhos”. O filme traz a história real de resistência dos moradores da favela do Vidigal que lutaram contra a remoção de suas casas.
Eu e Ricardo Calil tínhamos uma brincadeira durante as filmagens de “Uma Noite em 67”. A gente fez um bolão com a equipe para escolher o entrevistado mais simpático nos bastidores. Sérgio nos recebeu no apartamento que morou até o final da vida dentro da favela do Vidigal. Preparou comidas, comprou cerveja, papeou até o dia ir embora. O diretor de fotografia Jacques Cheuiche ganhou, na largada, o apelido de “sanduíche”. Venceu o bolão por unanimidade.
Mais pro final da entrevista, Sérgio disse: “Meu estado atual financeiro é comum. Eu poderia estar ganhando fortunas com a semente que eu andei plantando por aí. Mas não me incomoda o fato de eu não ter respostas materiais, eu não fiz com propósito de obter lucro de nada. O meu propósito primeiro era uma desova de coisas que eu tinha pra fazer ao longo de minha vida, que eu desovei numa boa, adorei ter feito tudo que fiz, não mudaria nada. Acho que estou em paz comigo mesmo. A vida, no final das contas, me deu coisas muito bonitas. Principalmente meus filhos. Eu tenho três filhos que me deram uma alegria que não tem preço. Não teria preço o resultado do meu trabalho financeiro, isso não teria interessado grande coisa como interessou, o que resultou da criação dos meus filhos”.
Era realmente comovente a relação dos filhos Marina, Adriana e João com o Sérgio Ricardo. Amorosos, guerreiros e incansáveis na luta para divulgar a obra e o imenso valor do pai.
Muita gente lembra do violão quebrado por Sérgio Ricardo no Festival de Música Popular Brasileira, em 1967. Impedido de cantar “Beto Bom de Bola”, ele foi brutalmente vaiado e perdeu a cabeça. Quase 50 anos depois, na filmagens de "Uma Noite em 67", Sérgio topou voltar ao estúdio. Feliz como uma criança, mostrou o novo arranjo. Dessa vez, Sérgio tocou a música até o final.
Os acordes dessa música estão pendurados do meu lado enquanto escrevo este texto. Coloquei numa moldura e pendurei na minha estação de trabalho para nunca esquecer desse momento. E nunca esquecer do talento e da generosidade de Sérgio Ricardo.
Texto de Renato Terra, na Folha de São Paulo.
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