Sem problemas de espaço ou de crianças, acabo me dando bem com a quarentena; sempre fui de ficar em casa, ouvindo música e enrolando no computador.
Ainda assim, duvido de quem prevê grandes mudanças no regime de trabalho ou no sistema de educação a partir da pandemia.
Já faz tempo que se adota o home office em algumas áreas de atividade, como a minha, por exemplo. Mas a Covid foi mostrando, na verdade, desvantagens que não se imaginavam antes.
Nas escolas é onde isso se torna mais visível. O aluno de ensino médio ou de faculdade não tem como aproveitar direito as aulas no computador.
Há uma psicologia nisso.
Na vida normal, você acorda, toma o café da manhã, demora um tempo até chegar à escola, encontra os colegas, entra na classe, espera o professor tomar controle da situação.
Esse tempo “perdido” envolve uma preparação mental. A cabeça se esvazia, graças à rotina, e mesmo as rápidas conversas e brincadeiras entre os colegas de classe têm um prazo. Depois de cinco, dez ou 15 minutos, cada um faz a pergunta tácita: “Muito bem, e agora?”.
Durante a aula, acontecimentos imprevistos quebram o ritmo da exposição —e mais ajudam do que atrapalham. Uma porta bate; uma conversinha paralela pode suscitar a bronca do professor; alguém pede para ir ao banheiro.
Tudo para, e depois recomeça.
Perde-se tempo com tudo isso? Sim, mas tempo perdido é tempo recuperado. A atenção, interrompida por dois minutos, se renova em seguida, como uma planta que precisa de uma poda de quando em quando.
Pela internet, os acidentes são menores: um problema de microfone, alguém chegando mais tarde na conferência.
A regra, contudo, é tudo processar-se lisamente, na mesma toada, sem tantos solavancos.
As próprias interrupções se dão num mesmo espaço, numa mesma faixa de onda cerebral. Para quem está de fone de ouvido e com os olhos grudados na tela, o transe não se quebra. A pessoa olha e escuta, mas a mente fica em dormência.
É confortável; naturalmente, você pode desligar a câmera e continuar ouvindo a falação enquanto foi à cozinha ou ao banheiro. Mas a interrupção voluntária não tem um valor de surpresa capaz de te deixar mais acordado.
O cinema, que como a tela do computador é em duas dimensões, corrige essa desvantagem pelos movimentos de câmera, pelos cortes, pela mudança de cenário.
Na conferência pelo computador, um zumbi fala para outros zumbis. A aula, a palestra ou o encontro deixam de ser uma ocasião especial, com sua paisagem própria e sua aura no tempo, para se tornarem o preenchimento de um dia, que terá várias outras horas semelhantes.
O mais triste não é que estejamos, todos, nesse estado de semiconsciência, de achatamento espacial, de indiferença pastosa diante dos “conteúdos” que se sucedem.
Reduzidos a uma quantidade fixa de bits, os próprios “conteúdos” perdem valor, porque neles não se fez nenhum investimento psicológico. Em vez de pegar o ônibus ou o carro, em vez de vestir uma roupa adequada, simplesmente liguei o laptop.
A própria atividade, o próprio trabalho, a própria necessidade de uma conferência que passam a ter uma existência suspeita, ou sobrenatural.
Não há dia em que eu não receba convites e anúncios para alguma fala de “especialistas” do mercado financeiro; “webinars” se sucedem para discutir “cenários” pós-Covid. Executivos, consultores, analistas, assessores: desconfio que essa gente passe muito tempo se reunindo inutilmente para passar um ao outro seus “briefings” e encomendar seus próximos relatórios.
Tantos assessores e reunionistas não podem perder o emprego; têm de mostrar serviço. “Zombie managers”, disse o jornalista Matthew Lynn, há algum tempo. Do banco à farmácia, do plano de saúde ao museu, da corretora de imóveis à academia de ginástica, todos se ocupam com videoconferências.
Não há quem não ofe reça “dicas” do que fazer durante a quarentena, não há quem não promova pesquisas de satisfação do cliente, não se reúna para sessões de “planejamento estratégico” ou para rediscutir “programas de sustentabilidade”.
Talvez isso tenha sido o “normal” antes da pandemia. Com o confinamento, isso se torna mais visível. Todos se protegem da contaminação; ao mesmo tempo, prolonga-se uma existência semicomatosa, que é a de um trabalho vazio, mais adequado a mortos-vivos do que a pessoas reais.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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