Há exatos oito meses, o MC carioca Poze do Rodo realizava um sonho. Cantou num evento oficial do Flamengo, time pelo qual é fanático, no Maracanã. O cantor, àquela altura, estava famoso com duas músicas —“Tô Voando Alto”, em que celebra o sucesso, e “Os Coringas do Flamengo”, que se tornou um dos hinos da torcida nas campanhas vitoriosas do time no ano passado.
Mas até a semana passada, Poze era considerado foragido pela polícia do Rio de Janeiro. Ele foi denunciado pelo Ministério Público depois de se apresentar, em março, no que seria o aniversário de um traficante na favela do Jacarezinho.
De acordo com o inquérito, Poze integra a maior facção criminosa do Rio, incita a violência, promove o grupo criminoso e participa de shows pagos pelo tráfico. Depois de ficar dias foragido, ele teve a prisão preventiva revogada, mas ainda está sendo investigado.
O funkeiro admitiu que já atuou como traficante entre 2015 e 2016, mas que não pratica mais os atos. Também confirmou que recebeu dinheiro pela apresentação que fez no Jacarezinho, mas que não sabia que se tratava de um show pago pelo tráfico.
“A denúncia é baseada no show no Jacaré, que o MC Poze participou. Logo depois, ele foi cantar numa boate em São Gonçalo, que anunciou o evento nas redes sociais. Provamos que, no Jacaré, era cumprimento de agenda, mais um show naquele dia. Não tem outras provas. As fotos [divulgadas, de Poze com armas] eram de quando ele era menor e morava na comunidade”, afirma Sílvia de Oliveira Martins, advogada do MC.
A investigação sobre Poze do Rodo marca um novo capítulo num embate histórico entre polícia, Judiciário e o funk. Ela vem meses depois da soltura de Rennan da Penha, condenado no ano passado, em segunda instância, por associação para o tráfico de drogas —o que ele nega. O DJ ainda vai ser julgado.
Os dois casos se somam às nove mortes no Baile da 17, em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, e à convocação de pelo menos dois DJs do 150 BPM para prestar depoimento na polícia no Rio, ambos no ano passado. Desde 2010, quando cinco MCs foram presos de uma só vez no Rio, acusados de associação para o tráfico e apologia de crimes, o funk não vivia um momento tão impactante de tensão com o poder público.
Em partes, pelo próprio legado de dez anos atrás. Na época, as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, haviam ocupado as comunidades do Rio. Enquanto gênero musical, o proibidão —estilo de funk com letras sobre a vida na favela em meio à guerra às drogas, visto por muitos como uma glorificação do tráfico—, que existia desde os anos 1990, vivia seu auge.
Os MCs Smith, Tikão, Frank, Max e Dido, todos do proibidão, foram presos quando houve a ocupação do Complexo do Alemão, em novembro daquele ano. Eles foram acusados de fazer apologia do narcotráfico e de ter envolvimento com a facção Comando Vermelho.
São MCs do tráfico. Têm participação direta fazendo marketing dos criminosos e manipulam as letras das músicas para agradar aos traficantes”, disse a delegada do caso, Helen Sardenberg. “Levam mensagens de ridicularização ao trabalho da polícia para a juventude idolatrar os traficantes.”
Entre os indícios, estavam vídeos publicados em redes sociais com músicas que falavam de chefões do tráfico, como Fabiano Atanázio, o FB. Presos em dezembro de 2010, os MCs foram liberados dias depois, após um habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça, o STJ, que considerou que o crime não era hediondo.
“Toda vez que a UPP se instavala, proibia o funk. Na comunidade de Santa Marta, chegaram a proibir o rap”, diz Carlos Palombini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e um dos maiores estudiosos do proibidão, que acompanhou o caso de perto. “O MC Smith, antes das invasões, relatou a mim em entrevista que já havia sido visitado por homens encapuzados, exigindo dele um pagamento de não sei quantos mil reais para que não fosse preso na ocupação.”
Segundo lembra Palombini, as prisões acabaram tendo caráter midiático. “Não prenderam nenhum chefe do tráfico. Todos fugiram. E essas prisões funcionaram como uma espécie de final melancólico dessas ocupações, de uma luta do ‘bem contra o mal’, nos complexos do Alemão e da Penha.”
Para o funk, o legado de 2010 foi uma arrefecida na produção de proibidões, além de uma diminuição dos bailes de comunidade. Se, naquela época, os principais alvos do funk eram as UPPs —e não facções rivais—, agora, as milícias começam a aparecer nas letras.
Há dois anos, Poze do Rodo ganhou espaço cantando proibidões em que fala de milícias. Mas o funkeiro ficou conhecido em todo o país por sua faceta pop. Entre novembro e dezembro do ano passado, ele teve suas duas músicas mais famosas, “Tô Voando Alto” e “Os Coringas do Flamengo”, entre as mais tocadas do Brasil no Spotify, fora as dezenas de milhões de plays em outras plataformas.
Essa mudança ficou mais evidente depois que ele foi detido em setembro passado, depois de cantar num evento em que 40 adolescentes foram flagrados com álcool e drogas. A apresentação aconteceu na cidade de Sorriso, em Mato Grosso, e o MC foi preso com outros três suspeitos, acusados de tráfico de drogas, incitação ao crime e corrupção de menores.
Na ocasião, a defesa do cantor afirmou que ele não tinha participação na organização da festa e que atuou só como músico. A argumentação é a mesma para o caso mais recente, em que, depois de cantar numa festa na favela, segundo sua defesa, fez outro show na mesma noite, cumprindo sua agenda.
“Sempre existiu [perseguição], mas agora tem as pessoas para expor na internet”, diz Rennan da Penha, DJ que hoje está numa das grandes gravadoras do país e acaba de lançar o DVD “Segue o Baile”.
“Quando eu estava foragido, lia comentários dizendo ‘ele que promove esses bandidos de fuzil aí’. Porra, eu que promovo? Eu que pego as armas e dou para os bandidos lá no morro? Eu que patrocino o crime? Olha que loucura! Tenho nada a ver com isso, só faço meu trabalho de DJ. Não preciso disso para nada. Como eu vou fazer isso tendo agenda cheia, mais de 30 bailes por mês?”
Rennan chegou a gravar uma música —ainda não lançada—com Poze do Rodo. “Ele mesmo já falou que teve envolvimento. Mas, a partir do momento que o moleque se desligou e foi para outra vertente, de viver da música, vai condenar o moleque por que ele estava cantando? É por isso que a gente fala que é perseguição.”
Os casos de Poze e de Rennan da Penha reacendem uma discussão antiga, sobre uma possível criminalização de músicos que cantam para criminosos, ou sobre criminosos. Diversos estudos falam em criminalização do funk desde o seu surgimento.
O marco inicial desse debate foi 1992, quando houve um arrastão na praia do Arpoador, no Rio. “Os bailes já aconteciam nos subúrbios, inclusive com confrontos com a polícia, mas não eram conhecidos pela elite cultural, pelos acadêmicos e a classe média alta”, diz Danilo Cymrot, estudioso de criminologia da Universidade de São Paulo e autor da tese “A Criminalização do Funk sob a Perspectiva da Teoria Crítica”.
Juliana Bragança, historiadora que acaba de lançar o livro “Preso na Gaiola”, com uma análise sobre o tratamento do funk pela imprensa na década de 1990, diz que a mídia passou a atrelar o termo “funkeiro” a crimes depois dos arrastões, que registraram pequenos furtos. “O termo funkeiro substitui tudo em determinado momento —pivete, bandido, traficante. Funkeiro passa a ser sinônimo disso.”
No livro “O Funk e o Hip-hop Invadem a Cena”, de 2000, o professor Micael Herschmann, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, faz um levantamento de menções ao funk nas páginas dos grandes jornais. Até 1992, o ritmo musical era pouquíssimo falado, mas aparecia sempre nos cadernos de cultura. De 1992 em diante, a maior parte das reportagens estão nos cadernos policiais ou de cidades.
Na década de 1990, o funk cresceu e se ramificou, por exemplo, em vertentes como o melody, o funk romântico de Claudinho e Buchecha. O “Rap das Armas”, dos MCs Junior e Leonardo —regravada por Cidinho e Doca—, inspirou a abertura de uma CPI no Rio em 1995, para investigar as ligações do funk com a comercialização de ilícitos.
As investigações não conseguiram provar essa conexão e, no ano seguinte, uma lei municipal reconheceu pela primeira vez o gênero como “a atividade cultural de caráter popular denominada bailes funk”. Em 1999, outra CPI, desta vez estadual, foi aberta, com o objetivo de “investigar os ‘bailes funk’ com indícios de violência, drogas e desvio de comportamento do público infanto-juvenil”.
Na mesma época, o deputado Sivuca, um policial militar do Rio, propôs um projeto de lei que proibia “a realização de bailes ou quaisquer eventos do tipo funk no território fluminense”. O documento definia um baile funk como “toda a atividade animada por ritmos derivados de outros similares estrangeiros e remixados, áudios e imagens que incitem à violência”.
Essas discussões acabaram gerando uma lei estadual em 2000, que não proibia, mas previa diversas restrições e exigências para a realização dos bailes. Em 2004, uma outra lei reconhece o funk como uma manifestação cultural, agora em âmbito estadual.
Em 2008, uma nova lei trazia ainda mais exigências para a realização dos bailes, como câmeras filmando toda a festa, alvarás da polícia com antecedência de meses e instalação de portas com detectores de metais. Na prática, as medidas não proibiam, mas inviabilizavam a realização dos bailes.
A resposta veio em setembro daquele ano, com dois projetos de lei aprovados. Um define o funk como movimento cultural e o outro revoga essa lei anterior. Ambos foram encabeçados por Marcelo Freixo, então deputado estadual pelo PSOL.
Em 2017, houve um novo projeto de lei, este não aprovado, a fim de tratar o funk como “crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”. “O funk faz apologia do crime, fala em matar a polícia. Sou pai de família e se eu não me preocupar com o futuro, amanhã só teremos marginais”, disse o empresário paulista Marcelo Alonso, autor do projeto, ao UOL.
No centro do debate, está o crime de apologia. “Há quem diga que é um crime inconstitucional. Nessa visão, nossa Constituição não admitiria o crime de apologia, justamente porque ele viola princípios como o da liberdade de expressão”, diz Cymrot. “Gosto de citar o jurista Nilo Batista, que diz que, se a mensagem não é suficiente para fazer com que uma pessoa cometa um crime, ela está dentro do âmbito da liberdade de expressão.”
Existem também discussões sobre até que ponto uma obra cultural —seja um filme, uma música ou um videogame, por exemplo— são definitivos para influenciar o comportamento de uma pessoa. Segundo Cymrot, pessoas de diferentes origens podem interpretar essas mensagens de maneiras distintas.
“Quem, por exemplo, é de uma favela e está acostumado desde cedo a conviver com a violência policial, um proibidão que fala disso vai ter um sentido completamente diferente do que para uma pessoa que nunca sofreu isso na pele —e pode se sentir escandalizada por um proibidão que defende a violência contra policiais.”
O pesquisador ainda detalha a diferença entre exaltar a figura de um criminoso e exaltar essa mesma figura pelos crimes cometidos por ela. “Se você exalta a figura de um traficante porque ele traz, por exemplo, melhorias para uma comunidade, não é apologia do crime. Não podemos esquecer que vários MCs foram criados juntos com traficantes, são amigos de infância.”
Mesmo num momento de exposição midiática inédito para o funk, o estereótipo da figura do funkeiro ainda é determinante nas discussões sobre criminalização.
“Se um artista de MPB canta músicas em que o eu-lírico é um bandido sanguinário, dificilmente alguém vai se sentir ameaçado por aquilo, porque entende que é um personagem. A pessoa não vai ser encarada como capaz de fazer aquilo que está cantando. No caso dos funkeiros, não. As pessoas têm dificuldade de reconhecer o funk como uma forma de arte, em que você separa o cantor do eu-lírico. Então, tudo que os funkeiros cantam pode ser visto como confissões de crimes —e não como um exercício de imaginação, que é próprio do mundo das artes.”
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