No final da década de 1970, Sérgio Ricardo escolheu morar num barraco no Vidigal. Desde então, nunca deixou de ter um endereço no morro da zona sul carioca. Seu ateliê de pintor foi montado num estreito apartamento de três andares. Da mesma janela ele podia ver o mar e a favela, como se um desembocasse na outra —retrato do Rio de Janeiro, do Brasil e de sua própria trajetória.
O artista morreu na na manhã desta quinta-feira, aos 88 anos, no Rio. Estava internado no Hospital Samaritano, desde abril. A causa da morte foi insuficiência cardíaca.
Integrante da primeira geração da bossa nova, cantando as belezas e as dores do amor, ele priorizou nos anos 1960 uma arte política, na música e no cinema. A trilha de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme de Glauber Rocha, de 1964, é um dos pontos altos de sua obra. Por muito tempo ficou associado a seus embates contra a ditadura militar.
“Faria tudo de novo se fosse preciso. O ruim é que me calaram a voz. Quando veio a abertura, meu nome já tinha sido apagado da memória do povo”, disse a este jornal, há 12 anos.
Em 1967, produziu a cena que se tornaria a mais marcante de sua carreira. Irritado com as vaias da plateia do 3º Festival da TV Record, quando interpretava o samba “Beto Bom de Bola”, gritou “vocês ganharam!”, quebrou o violão e o atirou sobre os espectadores.
“O violão quebrado não atrapalhou em nada minha carreira. Orgulho-me do gesto, principalmente por ter ocorrido no momento certo. O que me atrapalha é a perseguição do jargão oriundo do gesto, ‘o homem que quebrou o violão’”, disse na entrevista.
De 2008, quando lançou o álbum “Ponto de Partida”, até 2019, ano do CD e DVD “Cinema na Música de Sérgio Ricardo”, ele fez vários projetos como músico, cineasta e pintor, se distanciando de rótulos e estigmas. Ficou reconhecido como artista consistente e múltiplo —segundo o amigo e compositor Maurício Tapajós, só não sabia dançar balé.
Nascido em Marília, no interior de São Paulo, em 1932, numa família de descendentes de libaneses, ele começou a trabalhar em São Vicente, no litoral. Ainda com o nome de batismo, João Lutfi, foi discotecário na Rádio Cultura e pianista em boates da cidade praiana. Aprendera a tocar no conservatório de sua cidade natal.
Aos 20 anos, se mudou para o Rio para se dividir entre rádio e noite, atuando em boates próximas à orla. Nesse contexto cultural e geográfico, era praticamente inevitável que se engajasse na bossa nova. Foi ator de radionovelas e programas de TV na década de 1950. O diretor da Tupi, Teófilo de Barros, não considerava João Lutfi nome para um galã. Surgiu Sérgio Ricardo.
Já com a nova alcunha, conheceu João Gilberto em 1958. Apesar da reclusão do baiano, nunca deixaram de ser amigos. Suas composições agradaram à chamada turma da bossa nova, e ele ganhou a oportunidade de um disco em 1960, “A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo”. No repertório, amor, fossa, muita delicadeza e um sinal do que faria no futuro —“Zelão”, estranho naquele ninho, era um samba ambientado numa favela.
Seu trabalho foi se tornando mais e mais social, evitando ser panfletário. No cinema, estreou em 1961 como diretor do curta-metragem “Menino da Calça Branca”. A câmera ficou aos cuidados de seu irmão, Dib Lutfi, que logo se consagraria como um dos diretores de fotografia mais
importantes do cinema novo.
importantes do cinema novo.
Encantado com “Barravento”, de 1962, Sérgio fez uma música com esse título e se aproximou de Glauber Rocha. Naquele ano, ainda mantinha vínculos com a bossa nova, tanto que participou do célebre show do Carnegie Hall, em Nova York, em 21 de novembro.
“A bossa nova foi generosa comigo adotando algumas de minhas composições românticas e alguns sambas.
Mas não fui fiel à sua continuidade, por ambicionar outros caminhos temáticos. Fui sempre muito rebelde para me atrelar a rótulos”, afirmou.
Depois da morte do estudante Edson Luiz, em 1968, compôs “Calabouço”, nome do restaurante em que ocorreu o assassinato. É a primeira faixa de seu disco de 1973, no qual aparece na foto de capa sem a boca, numa alusão à censura.
Juntando música e cinema outra vez, lançou os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo no seu “A Noite do Espantalho”, de 1974.
Gostava de apostar em artistas mais jovens. Em 1972, na coleção “Disco de Bolso”, do jornal O Pasquim, lançou a dupla João Bosco e Aldir Blanc —com “Agnus Sei”— num compacto que tinha, no lado A, Tom
Jobim apresentando “Águas de Março” pela primeira vez.
Jobim apresentando “Águas de Março” pela primeira vez.
Ele se engajou ainda nas batalhas pela melhora do sistema de distribuição de direitos autorais no país. Era um dos líderes da categoria. Fez amigos dos quais nunca se afastou, como Chico Buarque e João Bosco, que participaram, a seu convite, dos shows “Tijolo por Tijolo”, no Vidigal.
Bosco escreveu nas redes sociais que Sérgio “foi um lutador pela cultura brasileira”. “Amigo de todas as horas. Turco querido, todo o morro entendeu quando Zelão chorou, saudade infinita.” E assinou Mohammed. Era como se tratavam. Chico era o Comendador Sem Vergonha.
Em outubro de 2019, Sérgio Ricardo quebrou um fêmur.
A partir daí, problemas de saúde crônicos se tornaram críticos —enfisema pulmonar, mau funcionamento dos rins e do coração. Em abril passado teve Covid-19, mas se curou em maio. Não pôde voltar para casa por causa da fragilidade geral do seu quadro.
Seus filhos Adriana, Marina e João —que participavam dos shows do pai, elas cantando e ele ao violão— se despediram nas redes sociais. “Sérgio será sempre mais que Sérgio, mais que João. Estará para sempre em toda a diversidade que nos cria.”
Texto de Luiz Fernando Vianna, na Folha de São Paulo.
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