A literatura especializada tem apontado sintomas de crise da democracia: recessão democrática, “crise de meia idade”, ruptura entre o povo e a classe política, populismo, e por aí vai.
Gostaria de apontar um pequeno e importante detalhe dentro desse universo: a incapacidade de grande parte da classe profissional especializada em política (o que chamarei de inteligência pública a seguir) de conseguir entender a política como ela é. E mais, de entender o cidadão comum, com quem muitos desses especialistas dizem se preocupar. Uma coisa é um “projeto de democracia”, outra coisa é o que “o povo de fato quer”.
Tivemos recentemente o espetáculo da entrevista do Bolsonaro no Roda Viva. Aqui não me interessa o aspecto ideológico do candidato nem dos jornalistas (também profundamente enviesados). Nem o destino do candidato nas eleições, nem os erros históricos cometidos por ele no programa nem as declarações infelizes que deu nos últimos tempos.
Com isso não quero dizer que muitos desses erros não toquem temas importantes e delicados da história brasileira. Quero apenas discutir o fato de que muitos jornalistas e intelectuais parecem saber falar apenas para “seus conversos”.
Talvez, se tivéssemos um populista, como o líder do partido trabalhista inglês Jeremy Corbyn, crescendo nas pesquisas aqui no Brasil, prometendo comida para todo mundo de graça e paga pelo Estado, escola e saúde de qualidade para todo mundo e pagas pelo Estado, direitos civis e humanos para todos os refugiados do mundo de graça e pagos pelo Estado, essa inteligência pública poderia entender o que significa ouvir o que as pessoas querem “no final do dia”.
A falha no entendimento do fenômeno Bolsonaro está no fato de que a inteligência pública, em grande medida, não olha para a realidade.
Ela olha para seus projetos sociais e políticos, para suas concepções de sociedade e justiça. Enfim, para o mundo como ela acha que deve ser (não entro no mérito se esse “mundo como deve ser” está errado).
Há um impasse cognitivo aqui. Como ela fica presa nos seus “temas”, ela ajuda pouco a população a entender por que discursos populistas estão crescendo no mundo (Jeremy Corbyn de esquerda, Trump de direita) e no Brasil.
Escravidão, ditadura, anistia, frases racistas, sexistas e similares, a população não se importa. Você pode ficar irritado, irritada, a inteligência pode espumar de raiva, gente bacana pode dizer “que absurdo”, mas de nada adiantará.
Se algumas pessoas podem entrar em um papo de comida, escola, saúde, direitos civis e humanos de graça, outras —a maioria— podem abraçar as seguintes causas: bandido deve ser preso ou morto, filhas devem poder ir à faculdade sem serem assaltadas; vamos deixar o passado para trás, porque ele já foi e as escolas não devem mandar seus filhos meninos brincar de boneca.
Vejamos. A ideia de consciência histórica que sustenta noções como a de responsabilidade moral pela escravidão é quase que totalmente opaca para quem junta trocados como salários durante a semana e tem na igreja evangélica no fim de semana o único “programa e lazer”.
Portanto, alguém dizer “eu não tive escravo, logo, não sou responsável pela escravidão” está mais próximo do dia a dia da imensa maioria da população do que a ideia de que existe uma consciência histórica que justifique essa pessoa se sentir culpada pela escravidão.
Ela não se sente racista (não estou dizendo que seja nem que não seja) nem obrigada a pagar nada para os descendentes dos escravos.
E, se ela mesma for descendente de escravos, ela assimilará essa consciência histórica da culpa como ganho imediato objetivo: cotas nas universidades ou concursos públicos.
Vejamos de novo. A ideia de que a sociedade deve ser responsabilizada pelo crime soa estranha para quem nunca cometeu o crime, vive sua “vidinha honesta” —e sua para sobreviver. Ela entende que, sendo pobre ou quase pobre e resistindo à opção de roubar, ela própria comprova que aqueles que o fazem não prestam.
E, de novo, ditadura. Ninguém está nem aí para a ditadura ou para quem morreu ou deixou de morrer. As pessoas estão preocupadas se os filhos vão morrer na rua. Por isso querem bandido preso (não assumo que “prender bandidos” seja “a” solução).
Não adianta ficar batendo nessas teclas. São teclas que não decidem eleições.
À medida que os cidadãos comuns vão falando, a inteligência pública vai odiando a democracia.
Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo.
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