segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Refém dos móveis e utensílios



Se você pensa que, pelo fato de ser possuidor de uma alma imortal e saber quem foi Aristóteles, isto o faz dono do seu nariz, engana-se. No futuro, todos viveremos em casas “inteligentes”, que nos obrigarão a levar uma vida intoleravelmente saudável, mesmo que à custa da nossa felicidade. Neste momento, por exemplo, entre as paredes do seu próprio lar, pode haver máquinas “lendo” os móveis e utensílios à sua volta e tomando decisões por você.  
Uma reportagem a respeito numa revista de compras me deixou assustado. Já existe um sofá que controla o tempo que você passa diante da TV, corrige a sua postura e não o deixa cochilar além do tempo regulamentar para cochilos, sabia? Nunca mais você chegará da rua, chutará para longe os sapatos e se aboletará no sofá com a TV ligada, pouco ligando para o que estiver passando. É como ter de novo 13 anos e uma mãe de chinelo na mão. 
Já há também móveis que executam funções obedecendo ao comando de voz. Um deles é outro sofá —a tecnologia adora sofás—, que abre ou fecha à sua ordem verbal. Enquanto o sofá o obedecer, acho que estará tudo bem. Só temo que, um dia, ele adquira vontade própria e, ao ouvi-lo ordenar “Abra!”, responda malcriado, “Abra, você!”. 
Mas nada supera o sistema armado para descobrir se você está de acordo com seu peso, idade e exigências médicas. O vaso sanitário, baseado no que você despeja nele, analisa a qualidade da sua alimentação. Faz isto confrontando o peso registrado na sua balança com os dados sobre seu desempenho cardíaco e grau de sedentarismo fornecidos pela sua roupa “inteligente”. Cruzando esses números com os de sua ficha médica, o vaso remete as informações para sua geladeira. Esta confere o estoque de alimentos saudáveis e, se não ficar satisfeita, dispara uma lista de compras para o supermercado. 
Pronto. Você viverá para sempre. Só que refém da sua privada. 

Crônica de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário