Minha vida não acabou de forma trágica, triste ou cinematográfica. Foi mais simples, rápido e tolo do que eu imaginava: eram dez da manhã quando pensei "acho que hoje vou almoçar no Ráscal" e percebi minha boca esboçar um sorriso.
Na adolescência, eu queria tantas coisas que causei um prolapso benigno no meu coração. Eu falava: "Tá me dando aquele atropelamento no peito". E minha mãe mandava: "Respira pelo nariz, solta pela boca, bem devagar". Nenhuma técnica de relaxamento jamais funcionou —o desejo desenfreado de abraçar, conquistar e controlar esse mundão era uma espécie de necessidade fisiológica.
Aos 20 e poucos, eu me via em almoços na casa do Caetano Veloso, tendo que implorar às pessoas, obviamente muito interessantes e cultas, que parassem de me pedir mais uma de minhas histórias. "Ai, gente, espera, minha garganta tá seca." E, enquanto Caetano me mostrasse uma letra que fez pra mim, eu, um tanto cansada "de tudo e de todos", balançaria a cabeça: "Ai, Caê, sei não"¦".
Quando ganhei um disputado prêmio "novos talentos" que me bancou uma viagem para Paris (e, deslumbrada, raspei meu cabelo apenas de um lado), tive a certeza de que jamais voltaria. A Europa era só o começo; conquistar a Ásia, uma obrigação; toda a América me celebraria. Eu queria ser lésbica e bissexual e pansexual e rica e famosa e de esquerda e militante e misteriosa e ao mesmo tempo e na mesma festa.
Ser jovem é ter acesso VIP a uma ala do cérebro chamada "estou empolgadíssima com meu futuro", uma sensação maravilhosa de que nos próximos mil anos poderemos ser um milhão de possibilidades. Mas daí um dia você compra uma bota em promoção na Arezzo e, quando dá por si, está combinando o cachecol com ela. Então você mete um carrinho de bebê no meio da sala, cagando por completo qualquer ideal de decoração e, quando menos espera, está falando frases como: "Estou atrasada para render a babá". Eu me encontro encostada, neste exato minuto, em uma almofada da marca Dr. Coluna.
Ser igual a trezentas mulheres da minha idade, ter o mesmo cabelo que elas, trocar informações a respeito de marceneiros e fisioterapeutas, tudo isso foi me preparando para o fim da vida. No entanto, a porrada final aconteceu naquela manhã, quando pensei "acho que hoje vou almoçar no Ráscal" e observei minha face se iluminar.
Horas de espera, tias escolhendo vagarosamente as endívias, ovos de codorna revisitados, casais tão excitados para transar quanto você está animado para fazer o canal no dentista.
Às vezes passamos em frente ao Ráscal e conjecturamos "nossa, Deus me livre, olha quantas pessoas parecidas, meio sem estilo, mas achando que estão elegantes, meio agindo como se fossem especiais, mas numa fila de restaurante de shopping, odiando suas vidas a ponto de se autoflagelarem em meio a desconhecidos igualmente desesperados" e, quando se dá conta, está com uma senha na mão, ávido, beliscando aperitivos de cortesia, com vontade de desejar feliz Natal às pessoas em pleno agosto, ansiando abocanhar aquele atunzinho semicru ou o ravióli verde de búfala como se fosse seu último pedido antes de ser metralhado.
É caro, é típico de paulistano que se rendeu ao fim dos sonhos, mas é o único lugar onde não pega mal misturar salmão cru, pizza de alho, polpettone, guacamole e antidepressivo. Já quis muito da vida; agora só quero que sobre espaço na minha barriga para as massas. O Ráscal é como envelhecer: somos contra, mas a outra opção seria pior.
Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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