Otavio topou escrever a orelha do meu livro sobre medos e crises de ansiedade, e eu, muito agradecida e emocionada, o convidei para almoçar. Finda a sobremesa, eu já angustiada querendo prolongar o papo, fiz o seguinte trato comigo: vou ler "Queda Livre - Ensaios de Risco" ainda esta semana e mandar um email bem caprichado para que, talvez, se eu tiver muita sorte, iniciemos uma amizade. Não li o livro (até esta manhã; e a leitura está sendo muito intensa porque o conteúdo trata sobre o temor da morte e, não obstante, a coragem, apurada e honesta, com a qual o autor se lança a pulsões que o aproximam dela). Nunca escrevi o email.
Na faculdade, a Priscila fez uma festa e chamou praticamente a classe inteira —menos eu. Encasquetei com aquela menina tímida e magrela e não descansei enquanto não consegui ser a sua melhor amiga. Várias vezes na semana, caminhávamos até o antigo Espaço Unibanco para ver filmes, comer pães de queijo e coçar as canelas. Estávamos aprendendo a dirigir, a suportar o estágio que não nos agradava e a lidar com rapazes que nunca mais telefonavam —tudo isso (mais a moda de usar meia-calça) nos dava a mesma alergia naquela parte das pernas. Vivemos grudadas por mais de uma década, até que ela se casou e mudou para Paris. Durante anos, ela me convidou insistentemente para visitá-la. Nunca dava tempo, nunca cabiam na minha vida fóbica esses dias incríveis que alargariam meus limites. Então ela morreu.
Li o brilhante livro de contos "Jeito de Matar Lagartas" e adicionei o escritor Antonio Carlos Viana no Facebook. Ele topou a aproximação virtual e me surpreendeu com uma mensagem na qual dizia que andava me lendo e gostando. Convidou-me então para um pequeno evento que organizava em Aracaju, chamado Autor do Mês. Achei longe demais, quente demais, em cima da hora demais. Vi as fotos, uma turminha ótima, animada, encantadora. Pouco tempo depois, Antonio parou de responder a minhas mensagens, e em seguida eu soube da sua morte.
Quando me perguntam para quem eu escrevo, sempre respondo que para ninguém ou para a parte de mim que não pode surtar. Mas a verdade é que escrevo para tocar interlocutores possíveis, perspectivas de uma vida menos chata, menos óbvia, menos superficialmente sufocante. Escrevo para que alguém possa entender e me explicar meus escritos. Escrevo para autores melhores e maiores como Antonio Carlos Viana, na tentativa de ser catapultada da minha medida. Escrevo porque não fui a Paris, não fui a Sergipe, não irei a mais almoços com Otavio.
Escrevo para dar conta da saudade que sinto de fazer gargalhar minha amiga Priscila, ela me pedindo: "Para, que vergonha!", mas se divertindo com minhas palhaçadas. Escrevo para organizar, na minha caixa de "tudo o que tem no mundo", um troço chamado câncer e seu efeito nefasto que abrevia a existência de melhores amigos e de amigos sonhados. Escrevo para imaginar o abraço que eu teria dado no grupo de leitura do evento Autor do Mês e o que Otavio teria respondido à minha tentativa desesperada de ser sua amiga. Escrevo porque sou desesperada para ser amiga das pessoas.
Diferente de Otavio, não pulei de paraquedas, não tomei Santo Daime, não atuei numa peça de teatro, não mudei a história do jornalismo no Brasil. Mas escreverei para sempre (e sobretudo, enquanto puder, para este jornal) pensando na honra deste espaço, daquele almoço e de ter sido lida por ele.
Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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