Passei a noite de quarta-feira da semana retrasada no cruzamento da rua Major Diogo com o viaduto Júlio de Mesquita Filho, em São Paulo.
O viaduto, nessa altura, oferece centenas de metros quadrados de teto, embaixo dos quais vive uma comunidade de moradores de rua, ao abrigo das chuvas e do pior frio.
Digo que é uma comunidade porque, de fato, os moradores compartilham um fogão comunitário, e há um campinho de futebol administrado, com horários de jogo para jovens, veteranos etc. Só não verifiquei se há ou não jogos de futebol feminino.
Fora as áreas comuns (como o campo de futebol e a cozinha), o espaço embaixo do viaduto é dividido em lotes que configuram pequenas casas: cada morador ou núcleo (familiar ou de amigos) decora sua parcela com restos do desperdício urbano (camas, sofás, tapetes, armários que contêm a roupa e outros bens garimpados na rua).
Em suma, os moradores sob o viaduto não são propriamente sem teto: não só porque o viaduto os ampara, mas porque, de fato, eles vivem em pequenos lares.
O lixo, que se acumula às margens dessa vila urbana, contrasta com a limpeza dos espaços habitados. Você encontra um sofá sobre um tapete varrido (ou seja, a sala de uma casa, em que só faltam as paredes e a TV) e, a poucos metros de distância, ao longo da mureta que separa a rua dessa área habitada, você esbarra em uma acumulação de papéis, plásticos, dejetos e restos de comida apodrecendo, com o inevitável rato morto.
Chegando ao cruzamento, perguntei-me, aliás, por que o lixo não estava sendo coletado naquelas áreas...
Eu logo encontraria uma resposta. Mas, antes disso, é preciso explicar: naquela noite, toda a equipe da quarta temporada de "PSI" (HBO) estava gravando uma cena em que uma ex-moradora de rua reencontra amigos do passado.
A gente, como é normal, tinha conseguido a autorização da Subprefeitura da Sé, e nossa equipe de arte tinha preparado o cenário (nada extravagante, só uma daquelas áreas de vida mobiliadas por restos urbanos que descrevi antes —mais uma, parecida com as outras).
As gravações terminaram lá pelas 6h. Desmontamos o set e deixamos nossa "mobília" com um segurança (um morador do viaduto), pois voltaríamos no dia seguinte para completar as gravações da cena.
Depois de nossa saída, pelas 8h, aconteceu algo banal e, ao mesmo tempo, extraordinário por sua violência: um rapa. Ou seja, chegou um caminhão de lixo da prefeitura acompanhado por um carro da PM; os moradores do viaduto foram alinhados contra um muro e só lhes foi permitido levar consigo uma mochila e um pertence.
O resto (os móveis, os ornamentos, os utensílios de cozinha, a roupa, os objetos, o fogão comunitário, os botijões de gás etc.) foi triturado pelo caminhão do lixo na frente dos próprios moradores de rua.
Nosso mobiliário cenográfico não foi poupado: de nada adiantou o segurança mostrar o atestado de que estávamos filmando. Mas isso, diante da destruição dos móveis reais dos moradores de rua, é o que menos importa.
Para eles, era como se a sociedade destruísse com afinco (periódica e sistematicamente) os pequenos passos que conseguem dar na direção de uma morada, de um lar.
Entendi então por que a coleta do lixo não acontece regularmente nos lugares onde vivem os sem-teto. É como se, ao redor deles, a cidade deixasse o lixo se acumular propositalmente, para afogá-los, eles e seus poucos bens, na sarjeta, ou melhor, para poder confundi-los com o lixo e, quem sabe um dia, coletá-los do mesmo jeito.
Rapar significa tirar tudo, limpar as excrescências com uma lâmina rente ao chão; o rapa termina com um caminhão-pipa que passa um jato poderoso de água, para desinfestar. Na área de moradias quase urbanas, tratadas como lixo, não sobra nada.
Enfim, sobram os sem-teto, desarraigados e condenados ao nomadismo.
Cuidado, não acho que os viadutos sejam a solução à falta de moradias praticáveis. E não penso apenas nos moradores de rua: também sou solidário com os vizinhos que contemplam com um misto de medo e nojo a concentração de uma vila de sem-teto perto de sua casa.
Mas há uma malvadez perversa no ato de destruir aqueles semblantes de casas.
Na manhã de quinta, eu só conseguia pensar nos cretinos que, quando eu era criança, passeavam pela praia e, de propósito, demoliam os castelos de areia que a gente construía.
Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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