domingo, 26 de agosto de 2018

Refugiados e cidadãos

Há de se retornar mais uma vez a Pacaraima, pois é nessa cidade no extremo norte do país que se define atualmente o Brasil.
Pode parecer que essa é apenas uma frase de efeito para dramatizar um pouco textos jornalísticos do final de semana. Mas a verdade é que a vila de pouco mais de 12 mil habitantes é o ponto privilegiado de contato do Brasil com as dinâmicas de reconfiguração da política mundial e da função do que podemos entender por Estado-nação.
A imagem aterradora de uma turba queimando pertences de refugiados, suas tendas, e expulsando-os enquanto entoavam o hino nacional com o orgulho dos criminosos que se julgam moralistas, dos bandidos que têm olhos duros contra o crime, não é um incidente isolado. Esse é um caso premeditado.
O descaso do governo federal com a sorte dos refugiados e sua incapacidade de organizar uma política mínima de acolhimento e distribuição no território nacional desses que procuram fugir de instabilidades econômicas e políticas não são apenas uma falta moral repugnante. São uma bomba-relógio política já montada em várias partes do mundo.
Melhor gerir um povo em luta contra refugiados e delirando sobre símbolos nacionais do que alguém que não cai nesse tipo de armadilha primária. Poderíamos lembrar da aberração de ver cenas dessa natureza em um país como o Brasil, construído pela escravização dos negros, pelo extermínio de indígenas e pelo acolhimento de levas de refugiados armênios, sírios, libaneses, judeus, assim como de tantos outros imigrantes fugindo da miséria desde o século 19.
Essa aberração pode até ser loucura, já que ela expõe a mobilização de medos atávicos em um país que se beneficiou há mais de um século do que os refugiados trouxeram. Mas essa loucura tem método.
Em um momento no qual o Estado-nação já não existe mais, no qual as fronteiras econômicas são ficções, no qual a desestabilização da lira turca provoca efeitos imediatos na economia brasileira, cantar o hino nacional como expressão de um "este é meu lugar, forasteiro" só pode ser visto como um atestado de impotência travestido de força.
Ele é a prova maior de como o nacionalismo é o último refúgio da estupidez humana. Dele, as únicas coisas a derivar são paralisia e destruição.
Não tendo mais função econômica alguma, a nação se resume atualmente a seu núcleo originário. "Natio", em latim, está ligado a "nascimento", "origem". Ou seja, trata-se da simples afirmação fantasmática do nascimento que pretensamente nos daria algo de comum e intrasferível.
Mas nada nos une como "brasileiros"; nem sequer temos uma história em comum, nossos pactos entraram em colapso. Para se esquecer disso sempre haverá aqueles que procurarão criar unidades fictícias, construindo inimigos externos, mesmo que tais inimigos sejam refugiados lutando pela simples sobrevivência.
Mas é fato que nem sequer nisso o Brasil inova. A política mundial tem em um dos seus pilares a produção contínua de refugiados. Não há país minimamente desenvolvido que não se beneficie da pressão de desestabilização produzida pelo fato de existirem massas de não cidadãos migrando pelo mundo. Não cidadãos que estarão dispostos a suportar as piores privações para não retornarem à sua insegurança inicial.
Normalmente, o refugiado é contraposto ao cidadão, aquele que tem direitos e territorialidade garantidos pelo Estado. No entanto o cidadão sempre precisou do refugiado para se esquecer de sua contínua precarização e fragilidade.
Ele precisa disso para esquecer que será o próximo refugiado, o próximo a se encontrar em condição de vulnerabilidade extrema, o próximo a vagar sem rumo à procura de condições elementares de sobrevivência. Pois os vínculos elementares de solidariedade foram destruídos na última festa macabra de caça a estrangeiros.
Aí será tarde para descobrir que a solidariedade ou é irrestrita e incondicional ou é simplesmente inexistente. Será tarde para descobrir que nos tornaremos refugiados paradoxalmente cantando o hino nacional contra refugiados.

Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

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