sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Morte causada por policiais retrata as falhas da política de 'tolerância zero' em Nova York



Em agosto passado, no centro de Manhattan, os policiais atiraram em um homem negro e o mataram após ele ter atravessado a Times Square sacudindo uma faca de cozinha. Seus últimos momentos contam a história do falho sistema de aplicação da lei em Nova York.     
O dia da morte de Darrius Kennedy tem início às 3 da tarde, na frente das estrelas e das listras da bandeira norte-americana em neon da Times Square, em Nova York. Kennedy, um homem robusto, com longas tranças rastafári, veste uma camisa branca com mangas cortadas, jeans desbotados e sapatos de cor clara – e ele saltita de costas, se movimentando rapidamente em direção à Sétima Avenida e sacudindo uma faca de cozinha da marca IKEA.
Ele vai morrer. Um pedestre grita: "eles vão matar você, cara!".   
Primeiro, uma policial e, em seguida, quatro ou cinco outros policiais perseguem Kennedy com suas armas Glock de 9 milímetros (com acionamento de gatilho de 12 libras) empunhadas por ambas as mãos. Kennedy se afasta dos policiais e segue em direção ao sul, para o eterno crepúsculo das ruas de Manhattan. Ele tem quatro minutos e meio de vida.
 
Os policiais fecham rapidamente a Sétima Avenida usando fita policial, e as primeiras viaturas surgem cortando as avenidas, com suas sirenes ligadas. Pedestres tropeçam em meio às imagens desfocadas gravadas por turistas que correm em direção ao que acreditam ser uma aventura, sacando seus smartphones e câmeras na esperança de capturar uma caçada humana em vídeo – enquanto Kennedy continua saltitando rapidamente pelas ruas.    

A clássica linha que divide os EUA 

A discussão que ocorre na sequência do tiroteio mostra a clara e antiga divisão que existe entre os diferentes grupos de cidadãos norte-americanos. Alguns farão julgamentos precipitados em fóruns da internet, enviarão cartas aos editores de publicações e ligarão para programas de rádio para dar sua opinião. Eles vão escrever: “perdeu!”, “mais um que se vai” e “ele mereceu”. Eles vão endeusar os policiais, chamando-os de “os melhores de Nova York”, elogiando seus esforços para garantir a segurança na cidade grande. Eles vão ridicularizar a vítima, chamando-o de louco, de maconheiro armado com uma faca – um negro tolo.
 Outros poderão fazer perguntas angustiadas. Eles se perguntarão se, nesta conturbada nação que são os EUA, ainda é possível chorar pelos mortos, mesmo que seja por apenas um dia. Eles vão querer saber por que uma dezena de policiais não conseguiu lidar com alguém como Kennedy de outra maneira. Por que é, um homem pergunta, que animais que escapam do zoológico são imobilizados com dardos tranquilizantes, enquanto um ser humano em Nova York é simplesmente assassinado de forma brutal, a tiros, em plena luz do dia?

A irmã de Kennedy será mencionada e citarão suas palavras, que segundo as quais seu irmão era um músico talentoso, um homem que, sem dúvida, tinha seus problemas, mas, mesmo assim, ela dirá: “eles poderiam ter lhe um tiro na perna”. A tia de Kennedy diz que seu sobrinho era um “solitário”, e que as pessoas estão espalhando todo o tipo de mentiras a respeito dele. Ela insiste que ele era um homem bom e que não era um vagabundo.
Kennedy escolheu um cenário grotesco para a sua morte. Sua curta viagem começa na bem iluminada e eternamente barulhenta Times Square, perto do Teatro Minskoff e da sede do canal de TV ABC, onde enormes painéis eletrônicos anunciam musicais da Broadway, como “O Rei Leão” e “Mary Poppins”, além de expor algumas das marcas mais conhecidas do mundo, como Coca-Cola, Samsung e Heineken. As notícias cintilam percorrendo painéis luminosos tão grandes quanto uma quadra de tênis.

A Times Square, que é cortada ao meio na diagonal pela Broadway, recebe em média 1,6 milhão de pedestres por dia. É 11 de agosto, um sábado. Os funcionários dos escritórios não estão circulando pelas ruas, mas elas estão cheias com as habituais multidões de final de semana. Atores vestidos de Mickey Mouse e Elmo estão em pé nos cruzamentos, onde os turistas podem fotografá-los em troca de alguns trocados. O “Naked Cowboy” canta e toca sua guitarra, e o vapor sobe dos carrinhos de vendedores de comida. Kennedy e seus perseguidores gradualmente se movem para o sul de Manhattan, ao longo da avenida, passando pela ruas 44, 43 e até a 42 – Kennedy correndo na frente deles, dando pequenos saltos, pulando como um boxeador encurralado, enquanto os policiais, tensos e vigilantes, o perseguem com cautela à distância.      

Nenhum relatório policial em Nova York 

Algumas horas mais tarde, o chefe de polícia de Nova York, Raymond Kelly, diz que a resposta da polícia seguiu “rigidamente todas as regras”. O prefeito da cidade, Michael Bloomberg, disse: “ele tinha uma faca e estava correndo atrás das pessoas”. Mas os vídeos enviados para o YouTube, e há muitos deles, não parecem respaldar as declarações feitas pelo prefeito e por Kelly. Eles também não mostram os policiais tentando subjugar Kennedy com spray de pimenta, o que eles alegaram ter feito entre quatro e seis vezes.
 Não há relatórios policiais em Nova York. Há, no entanto, o porta-voz da polícia, Paul Browne, que não diz muita coisa útil – e há repórteres policiais. Às vezes, eles descobrem informações valiosas – às vezes não. Para eles, o caso de Kennedy é apenas o de um vagabundo que foi baleado até a morte. A manchete do "New York Post" vai estampar: “Ele conseguiu o que queria”.

O Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) tem seu lema pintado nas laterais dos veículos de sua frota – os três princípios orientadores para os 36 mil homens e mulheres que servem na força: cortesia, profissionalismo e respeito. O Guia de Patrulhamento do NYPD afirma, no Regulamento 203-12, que a polícia de Nova York “reconhece o valor de todas as vidas humanas e está empenhada em respeitar a dignidade de cada indivíduo”. Essa norma também estabelece que os policiais “não devem usar de força física mortal contra outra pessoa, a menos que exista uma causa provável que os faça acreditar que devem se proteger ou proteger outra pessoa da morte iminente ou de danos físicos graves”.

Kennedy continua se movimentando. Ele atravessa a rua 42, passando pelo edifício da Ernst & Young e pela estação de metrô da rua 42, onde as linhas N, Q, R, 1, 2, 3 e 7 se cruzam. Rumo à rua 41, as fachadas dos prédios estão cobertas com publicidades do novo filme do Batman, “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”. Durante a semana, os funcionários dos escritórios ficam de pé, à sombra das entradas dos prédios, fumando. Ônibus de turismo fazem suas paradas e vendedores de bilhetes, vestidos com boleros vermelhos, puxam os transeuntes para dentro de suas lojas. Esses são dias normais.    

Três minutos de vida      

Mas, aproximadamente às 15h de sábado, fica claro que esse não é um dia normal – não ninguém está em pé nas portas dos prédios. A área é fechada por causa de um homem com uma faca – uma faca com lâmina de seis polegadas (aproximadamente 15 cm), e não de 12 polegadas (30 cm), como os jornais e os canais de TV informarão, ao incluir o cabo para fornecer essa medição incorreta.
O tráfego desapareceu da larga avenida, e apenas carros da polícia correm para cima e para baixo. Vista de Times Square, o grupo liderado por Kennedy está se movendo para a esquerda, no centro da rua. Ele agora tem duas dezenas ou mais policiais em seus calcanhares, a maioria deles de uniforme e alguns à paisana, e todos têm suas armas em punho. Eles são acompanhados por um enxame amorfo de testemunhas ansiosas, cujos comentários podem ser ouvidos nos vários vídeos. “Você viu essa merda?”, uma pessoa pergunta.

Kennedy, homem de 51 anos de idade que parece mais jovem do que sua idade real, prossegue na frente do grupo. Primeiro, ele dá as costas para os policiais a cada trecho de poucos metros, parecendo tão altivo quando um toureiro que fica de costas para o touro. Mas agora ele apenas continua caminhando para trás, olhando fixamente seus perseguidores através das lentes redondas e verdes de seus óculos de aro de metal. Ele tem três minutos de vida.

Texto do Der Spiegel, reproduzido no UOL. Tradução de Cláudia Gonçalves.


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