segunda-feira, 8 de outubro de 2012

À sombra do monte Ararat, Armênia esconde seus encantos e mistérios


A apresentação ia começar em um teatro da era soviética com poltronas verde-oliva, tapetes caucasianos antigos e um teto de ladrilhos em Ierevan, a capital da Armênia. Eu estava com um homem quase 50 anos mais velho que eu, o qual, enquanto me conduzia em uma turnê por um centro de arte experimental em uma antiga discoteca, naquela manhã, havia me perguntado se queria acompanhá-lo naquela noite ao Teatro Estatal do Jovem Espectador.
Convites como esse não são raros neste país de 3,3 milhões de habitantes, onde os turistas ainda são tratados como convidados e levados às casas para tomar café com doces, ou, como neste caso, convidados para uma apresentação de pantomima de vanguarda.
Quando a peça começou, rapidamente ficou claro que não se parecia em nada com as pantomimas feitas para crianças no Ocidente. Era uma emocionante apresentação de dança interpretativa sobre um mártir do século 3º, santo Ardalião, sendo sua morte sugerida pela fita amarrada em torno de seus punhos e tornozelos. Ardalião tinha sido contratado para trabalhar em uma peça que zombava do cristianismo, mas foi inspirado a se converter em cena e foi morto por isso.
A peça resumiu adequadamente a Armênia, que é considerada o primeiro país a adotar o cristianismo como religião oficial, no ano 301, e que perseverou ao longo dos séculos apesar de ser conquistada pelos romanos, persas, árabes, mongóis, turcos e, é claro, soviéticos. É um país que não esqueceu o genocídio armênio no início do século 20 e cujo símbolo nacional, o monte Ararat, onde muitos cristãos acreditam que a Arca de Noé pousou, hoje fica do outro lado da fronteira turca, fechada.
Mas a peça também foi um produto da Ierevan contemporânea, onde antigas tradições se justapõem a um vibrante cenário artístico e onde um aeroporto recém-reformado não fica longe de várias catedrais incríveis, de mais de mil anos.
A energia criativa é palpável: a cidade está cheia de frases coloridas de escritores famosos pintadas com spray nos prédios. Uma loja de suvenires em que entrei tinha uma galeria de pintura abstrata, a Dalan Gallery, escondida no segundo andar, assim como cinco papagaios verde e amarelos.
O Centro Armênio de Arte Contemporânea e Experimental ocupou um clube noturno cavernoso da era soviética depois que o país conquistou a independência da URSS em 1991, e hoje abriga cerca de 12 exposições de arte multimídia e festivais todos os anos.
A primeira coisa que notei sobre Ierevan, na correria do táxi desde o aeroporto de madrugada, foi que de modo algum era uma cidade cinzenta pós-comunista. Os edifícios combinam a arquitetura soviética clássica com a notável rocha vulcânica rosa e laranja originária do país. "Os russos a chamam de cidade cor-de-rosa", disse Mane Tonoyan, um guia turístico.
Nenhuma ligação pessoal me havia atraído para esse país montanhoso. Contatos com as comunidades armênias em Beirute e Istambul haviam aguçado minha curiosidade, mas foi a necessidade de ir para algum lugar que ainda parecesse um segredo, explorar um lugar do qual a maioria dos viajantes conhecia pouco ou nada, que motivou minha visita.
De fato, apesar de oferecer inúmeros sítios históricos impressionantes, incluindo uma versão muito mais antiga de Stonehenge, chamada Karahunj, a Armênia quase não aparece no radar dos turistas, que visitam a vizinha Turquia aos bandos. Isso significa que os serviços e as acomodações criados para os visitantes podem ser rudimentares, embora às vezes isso apenas aumente seu encanto. Em uma excursão que fiz, o motorista da van de repente parou para conversar e comprar ovos frescos de uma mulher à beira da estrada. Depois de outro passeio, uma família de quatro pessoas me convidou para seu apartamento e me ofereceu café forte e os tradicionais doces de uva e avelã.
Os antigos mosteiros e igrejas da Armênia talvez sejam seus maiores tesouros culturais, e correspondem a vários sítios do Patrimônio Mundial da Unesco. Um dos mosteiros mais intrigantes é Geghard, um complexo de igrejas e túmulos escavados em penhascos rochosos a 40 quilômetros a leste de Ierevan, há muito tempo conhecido por abrigar a lança que teria perfurado Cristo na cruz. (A lança está hoje em um museu na catedral de Echmiadzin, a oeste de Ierevan.)
Visitei Geghard em meu segundo dia no país. Enquanto percorria os arcos da catedral de 800 anos iluminada a velas, ouvi cantos que se tornavam cada vez mais fortes. Logo encontrei um grupo reunido em um santuário interno e vi um monge de capuz preto e capa dourada cantando com uma rica voz de barítono, que ecoava pelas paredes de pedra.
Devo ter parecido surpresa, porque então uma adolescente com um vestido lavanda ergueu seu smartphone para mim. Usando um dicionário de armênio-inglês, ela tinha digitado a palavra "batismo". Quando um menino vestido de branco se adiantou, eu saí disfarçadamente da sala fechada por cortinas vermelhas, para não importunar.
Lá fora na praça, três músicos tocavam o duduk, um instrumento de sopro tradicional feito da madeira de abricozeiro; as crianças andavam por ali usando coroas de flores; vendedores ofereciam pombas brancas, para ser libertadas depois que os visitantes fizessem seus pedidos. Em uma plataforma lateral, homens de botas estripavam um cordeiro pendurado, com o sangue vermelho vivo derramando-se sobre a pedra; uma mulher de lenço branco na cabeça me disse que dariam a carne aos aldeões pobres. Exceto pelos monges estudantes de batinas pretas que escreviam mensagens em celulares, ali perto, toda a cena poderia ter sido um quadro de mil anos atrás.
Naquela noite assisti a um violinista franco-russo chamado Fedor Roudine, vencedor do grande prêmio da Competição Internacional Aram Khachaturian, que deu concertos em um elegante auditório dos anos 1930. Meu ingresso custou apenas 2.000 drams (aproximadamente R$10). Quando Roudine terminou, dois canhões nas laterais do palco dispararam uma chuva brilhante vermelha, azul e laranja, as cores da bandeira armênia.
Como Khachaturian, o compositor que um dia foi denunciado como "antipopular" e enviado de volta à Armênia para "reeducação", os artistas do país muitas vezes tiveram de lidar com a repressão do governo. Os soviéticos proibiram Sergei Parajanov, o legendário diretor armênio, de fazer filmes durante 15 anos depois de seu filme aclamado pela crítica "A Cor das Romãs", que foi lançado em 1968.
Para preencher o vazio, Parajanov começou a fazer colagens. Centenas de suas montagens únicas estão reunidas no Museu Sergei Parajanov, um destaque improvável no rico panorama de casas-museus de Ierevan. Uma sala é dedicada a obras de Parajanov criadas durante seus quase cinco anos na prisão, como esculturas em tampas de garrafas que parecem moedas antigas.
Apesar do perigo, os intelectuais armênios continuaram forçando os limites. Durante uma era em que a "arte não oficial" - qualquer coisa além do realismo socialista - era heresia para o Kremlin, e as exposições dela eram arrasadas em Moscou, as autoridades de algum modo permitiram que um Museu de Arte Moderna fosse aberto em Ierevan em 1972. "Até mesmo alguns artistas não acreditavam que fosse abrir", disse Nune Avetisian, o diretor da instituição.
O Museu de Arte Moderna de Ierevan foi o primeiro dessa espécie na União Soviética. Ainda é difícil entender como permitiram que ele exibisse obras como "Em uma cidade", de Hakob Hakobyan, uma pintura de 1979 que mostra uma multidão de homens sem cabeças erguendo os braços sem mãos em uma praça no estilo soviético.
Talvez a liberdade que as autoridades deram ao museu fosse simplesmente o resultado da geografia da cidade: "Era tão pequena e tão distante do centro, em Moscou", disse Avetisian.
Em meu último dia em Ierevan viajei para o sul até o mosteiro de Khor Virap, passando por profundas gargantas e montanhas que se desdobram infinitamente, parecendo tocar as nuvens, casas com telhados vermelhos e flores silvestres roxas brotando de rachaduras nas paredes de rocha vulcânica. O pico coberto de neve do monte Ararat estava sempre à distância.
Quando entrei em Khor Virap, cuja principal atração é uma masmorra profunda onde o santo patrono da Armênia, Gregório o Iluminador, ficou preso no século 3, um rapaz estendeu para mim um grande galo, sorrindo maliciosamente. Eu fizera questão de ir a um país que ainda parecesse não descoberto, e embora o vendedor de galo pudesse ter adivinhado que a ruiva com uma câmera não estava realmente no mercado para ver um sacrifício sangrento, eu apreciei o gesto.
Reportagem de  Rachel B. Doyle, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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