Honra é a maior arma por trás das revoluções morais
Escritor diz que a causa do fim do tráfico negreiro ou dos pés atados das chinesas foi a honra, e não a lei ou a religião
CASSIANO ELEK MACHADO
DE SÃO PAULO
DE SÃO PAULO
O professor Kwame Anthony Appiah não conseguia parar de pensar num tema com o qual havia topado enquanto pesquisava para um livro anterior: os pés das chinesas do século 19. Ao longo de mais de mil anos, como ele havia lido, em toda a China atava-se os pés das meninas, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados como uma flor de lótus, chegando a medir 7,5 cm numa mulher adulta.
Nascido na Inglaterra, criado em Gana, radicado há 30 anos nos Estados Unidos, o professor da Universidade de Princeton tentava seguir com sua pesquisa sobre o historiador e sociólogo americano W. E. B. Du Bois (1868-1963), assim como ele um intelectual de enorme influência nos estudos afro-americanos. Mas não conseguia esquecer dos pezinhos chineses.
Voltou a ler sobre eles, e surpreendeu-se com um detalhe. Se essa prática havia durado mais de mil anos, ela praticamente desaparecera do mapa em 20 anos. Seguindo esta seara, Appiah encontrou evidências de que questões ligadas à honra, por exemplo o fato de que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o repudiavam, tinham sido decisivas para que o costume fosse abandonado.
O professor seguiu estudando outras mudanças abruptas nos universos morais de diferentes países, como a erradicação dos duelos na Inglaterra e o fim do tráfico de escravos no Atlântico Norte, e, "voilá", escreveu um ensaio chamado "Ó Código de Honra", que lhe rendeu inúmeras distinções pelo mundo afora.
Não foram as primeiras. Aos 58 anos, o professor Appiah tem um currículo de mais de 80 páginas (letras miúdas) em seu website, repletas de grandes honrarias. Lá está, por exemplo, o registro de que "O Código de Honra - Como Ocorrem as Revoluções Morais" foi lançado há pouco no Brasil, pela editora Companhia das Letras (R$ 39,50, 256 págs.). Para falar sobre o livro, ele esteve agora em setembro em São Paulo, e conversou com a Folha.
Folha - Existe uma bibliografia enorme sobre revoluções políticas, socioeconômicas ou científicas, mas quase não se fala em revoluções morais. Por que é possível chamar estas mudanças sobre as quais o sr. escreve de revoluções?
Kwame Appiah - Revoluções são grandes mudanças em curtos períodos. Trato de mudanças que costumam acontecer em até 20 anos. Elas não seriam chamadas de revoluções pelas escalas adotadas para a política. Mas o são em termos da vida moral. O hábito milenar de amarrar os pés das mulheres na China, por exemplo, sumiu ao longo de uma geração. O mesmo aconteceu com os duelos. Em 20 anos, passaram de uma prática que o primeiro-ministro poderia adotar para ganhar honra a algo ridículo. No Brasil, a escravidão foi considerada normal por centenas de anos, num curto período ficou "menos normal" e, em seguida, algo abjeto, a ponto de netos não entenderem como seus avôs foram capazes de escravizar.
O sr. já vivenciou alguma revolução moral?
Quando fui morar nos EUA, em 1981, se você dissesse no aeroporto que era homossexual seria imediatamente mandado de volta ao seu país. Hoje, se eu disser no aeroporto de Nova York que sou gay, vão me perguntar quem é o meu marido. Se tivessem me dito à época que cheguei que depois de 20 ou 30 anos eu poderia não apenas afirmar que sou gay como casar com outro homem eu acharia um delírio. Esta é uma revolução moral.
Como é a convivência da moral com a honra?
O caso dos duelos nos ajuda a esclarecer. Eles vinham acontecendo ao longo de 300 anos. Durante todo esse tempo eles eram ilegais, condenados pela Igreja e considerados uma loucura. Nos testamentos que os duelistas deixavam antes das batalhas ficava claro que sabiam que fariam algo errado, mas se sentiam obrigados a seguir por honra. Daí você aprende que a honra é muito poderosa e é independente da moral. Pode enfrentar a moral e vencer. Mesmo hoje: relatos recentes de curdos que assassinaram mulheres por honra mostram que eles o fizeram chorando, que sabiam que era errado, mas que era preciso fazê-lo.
A morte por honra faz com que 5.000 mulheres por ano sejam mortas por "envergonharem" suas famílias. Isso pode acontecer simplesmente porque ela foi estuprada.
O sr. diz que num futuro próximo sentiremos vergonha de termos vivido num tempo em que se matava por honra. Do que mais sentiremos vergonha?
Teremos vergonha de muita coisa, a começar por nossa comida. O tratamento de animais, criados para servirem de alimentos, é um escândalo. Nos Estados Unidos é perfeitamente legal fazer as coisas mais abjetas com porcos, galinhas e vacas que serão servidas nas mesas.
Com os humanos não é melhor. Temos hoje a maior população carcerária da história mundial, cerca de 20% dos presos do mundo. E as condições das prisões são terríveis. Se elas fossem apresentadas como sendo do Paquistão, os Estados Unidos mandariam o Exército intervir. Da mesma forma, se o que é feito em Guantánamo fosse uma obra do governo de Uganda estaríamos defendendo a condenação do presidente deles no Tribunal Penal Internacional.
O sr. considera o governo Obama honrado?
Não. Deveríamos ter muita vergonha dele, e alguns de nós temos. Obama, em quem vou votar novamente, tem um encontro semanal com agentes secretos, todas as terças, para decidir que pessoas da Al-Qaeda ou de outras organizações semelhantes os Estados Unidos irão assassinar.
Passei muitos anos lutando pela liberdade de expressão na China. Mas não me sentia na melhor posição para condenar as prisões se estávamos no negócio de assassinar pessoas.
Apesar de tudo, o livro do sr. parece otimista com relação aos avanços morais, não?
Não conclamo todos ao otimismo. Simplesmente foco nas questões que estão melhorando. Em diversos assuntos não estamos melhor, e em outros estamos piorando. Mas acho que se seu padrão de avaliação é comparar o século 19 com os dias de hoje, você ficará enormemente impressionado com o fato de que as condições simbólicas e materiais são claramente muito superiores hoje. Os chineses e os hindus tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza, é possível fazer uma operação cardíaca em qualquer país do mundo, erradicamos a varíola.
A sociedade dá dois passos para frente e um para trás. Depois de cem passos chegamos a cinquenta passos adiante. Nós andamos para trás todo o tempo, e Guantánamo é um exemplo claro disso, mas por outro lado, ainda que eu seja um crítico do regime chinês, eles estão avançando. Martin Luther King costumava dizer que o arco do universo moral é comprido, mas que ele pende em direção à Justiça.
A expressão "código de honra" é muitas vezes associada a instituições criminosas, como a máfia italiana. No Brasil, circula pela internet uma espécie de "código de honra", ou um estatuto, de uma facção criminosa chamada PCC. O que podemos aprender com estes códigos?
Já vi o código do PCC e ele exemplifica muitas das características dos códigos de honra em geral. Faz referência a ideias morais, como traição, inveja, humildade e respeito, mas vai além da moral ao pregar solidariedade dentro de um grupo em particular. Pelo que vi, o código deles não menciona especificamente honra, mas pressuponho que os integrantes do grupo acreditem que aqueles que permanecem dentro do código merecem respeito. Sem saber mais sobre a sociologia deste grupo, não tenho como prever quão eficiente este código consegue ser na prática e quais os desdobramentos para quem não os cumpre. Mas é um tipo muito interessante de código de honra.
Texto e entrevista publicados na Folha de São Paulo, de 24 de setembro de 2012.
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